E se o deserto, que todos associamos apenas a lugares ermos e desabitados, fosse também um lugar de comunhão e reencontro, mas ao mesmo tempo de assombros e experimentações artísticas? Aqui ficam "instruções para atravessar o deserto", como escreveu o poeta valenciano Juan Vicente Piqueras.
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Não chegou a tantas leitores como eventualmente poderia o primeiro livro em Portugal de Juan Vicente Piqueras, uma seleção de poemas da sua autoria em que, a dada altura, encontramos um pequeno milagre construído só de palavras.
Intitulado "Copos de sede", o poema não versa, no entanto, sobre o milagroso líquido. A sede a que o escritor e diplomata espanhol alude está sobretudo relacionada com a ânsia da plenitude e a busca desenfreada de felicidade, a que tanto podemos chamar amor ou outra coisa qualquer:
Copos de sede
Se duvidas da tua sede, se não te atreves
a perguntar-lhe ou a dar-lhe um nome,
se só sabes que procuras uma água
que a sacie e não encontras senão poços,
e neles ecos que te chamam, bebe.
Se a sede ao beber desaparece
é porque era só sede. Continua a procurar.
Mas se cresce em ti quando a sacias,
se queres não deixar de ter sede
e sim continuar a beber dia e noite
copos de sede, não duvides:
podes chamar-lhe amor, continuar sofrendo,
e saber que não existe quem te guie.
Há quem carregue o ideal do deserto dentro de si e há quem, como os Tinariwen, seja literalmente feito dele. Oriundo do norte do Mali, da região atravessada pelo Saara, o grupo de tuaregues encontrou na música a linguagem perfeita para relatar o seu modo de vida. Fê-lo através dos sons pertencentes à sua herança cultura rica, mas assimilando-os com influências ocidentais, ao incorporarem os blues, o folk e o rock nas suas canções.
Só mais de duas décadas depois da sua criação é que os Tinariwen chamaram a atenção dos media e do público do resto do Mundo. De então para cá, têm percorrido palcos de todos os continentes, saudando sempre as plateias com um significativo "bem vindos ao deserto"
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Se, para os Tinariwen, o deserto é, mais do que um habitat, um modo de vida, os australianos Dead can Dance exploram outras matizes no icónico "Desert song". Neste tema, inserido no disco "Toward the within", o deserto é um lugar de fuga, reduto último de quem perdeu toda a esperança e busca inutilmente uma redenção. A voz grave de Brendan Perry serpenteia por entre versos que conjugam o medo e a insegurança, lado a lado com a fúria e o descontrolo. A salvação, afinal, pode esperar.
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Visão mais beatífica e serena do deserto tem o madrileno Pablo D'Ors. E não necessariamente por ter sido ordenado padre católico há 30 anos. No livro "O amigo do deserto", publicado em Portugal pela Quetzal no final de 2019, o professor e ensaísta, neto do crítico de arte Eugénio D'Ors, celebra uma visão do mundo que enaltece a importância da paciência, da compaixão e do sofrimento para o nosso crescimento enquanto seres com pretensão a humanos. Na sua ótica singular, os oásis serão tão mais retemperadores quanto maiores forem os conhecimentos que apreendermos durante a jornada feita até lá chegarmos. Só quando nos tornarmos amigos do deserto podemos saciar a nossa sede no oásis que nos (des)espera. Nesta entrevista ao "El Pais", D'Ors defende o exercício lento do quotidiano.
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O deserto inspira poemas, ensaios e canções, mas, bem vistas as coisas, nunca deixa de ser o que realmente é: uma região árida, coberta por um manto de areia, com um índice anual de baixíssima precipitação de água, caracterizada pela escassez de vegetação, dias muito quentes, noites muito frias, e ventos muito fortes.
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Daí a importância de o conhecermos, do ponto de vista geográfico ou geológico - científico, em suma - para que não nos tornemos seus prisioneiros, como nos alerta este documentário premente sobre o deserto do Saara.