Canção ousada, cheia de críticas sociais, "Tourada" fintou a censura do Estado Novo: Ary dos Santos e Fernando Tordo fizeram uma canção para a história. "Fiquei surpreendido, como foi possível?", recorda agora Tordo ao JN.
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Foi a 26 de fevereiro de 1973, faz este domingo 50 anos, que Portugal ouviu "Tourada" pela primeira vez. A revolução dos cravos ainda não tinha chegado, a censura era real, a perseguição, a guerra, o país parado também. E eis que chega ao 10.0 Grande Prémio TV da Canção Portuguesa, hoje o Festival da Canção, um tema ousado e avassalador, cheio de metáforas e de críticas nas entrelinhas, que marcou e ainda marca gerações. 50 anos depois, "Tourada" é um Everest cultural.
Como diz o refrão: "Nós vamos pegar o mundo pelos cornos da desgraça e fazermos da tristeza graça". Como foi possível isto passar pela censura do Estado Novo?, pergunta hoje, aos 74 anos, com riso atónito, Fernando Tordo. "Nem eu, nem o Ary dos Santos, coautor da canção, esperávamos que a "Tourada" fosse escolhida. Muito menos que ganhasse. Fiquei surpreendido, claro. Da forma como o país estava, como é que se concebe?", torna Tordo.
A verdade é que nem a censura reparou na mestria de Ary a brincar com as palavras, nem nas mensagens que lá estavam. "Não importa sol ou sombra, camarotes ou barreiras, toureamos ombro a ombro feras, só nos podem causar dano esperas". Ou: "Entram empresários moralistas, entram frustrações e contradições, e entra muito dólar, muita gente que dá lucro aos milhões". "E, porque tudo mais são tretas", sublinha Fernando Tordo, o resto é história: havia apenas um canal de TV em Portugal e o Festival da Canção era visto por 6,5 milhões de pessoas.
"Esta canção mexeu muito com a gente. E mexeu porque é uma canção que se adapta a várias situações, é válida em qualquer altura do tempo", diz Tordo. "A mensagem extravasou a canção e passou a ser um pouco da nossa história, de um momento que relata uma fase muito grave do nosso país", diz o cantor.
Mas, como nasceu afinal a mítica canção? Tordo explica: "A "Tourada" fez parte de um grupo de quatro temas que nós enviámos para o festival de 1973. Foi um tema que eu deixei ficar para o fim porque era, como direi?, diferente, diferente do habitual", conta o artista. Mas, como se juntou letra e música? "Foi como normalmente eu fazia com o Ary: eu fiz a melodia, toquei para ele e ele perguntou o que é que eu queria, o que me fazia lembrar? E eu disse-lhe que me fazia lembrar uma tourada, havia algo no ritmo e na melodia".
Não fazia ideia, então, Tordo, que daquela génese se poderia "chegar a um ponto em que o tema se transformasse numa gigantesca crítica social", admite.
"Quando eu disse que me fazia lembrar tourada, o Ary respondeu: "Mas eu não percebo nada de touradas". Então, pediu-me para escrever numa folha a terminologia e foi assim. E depois começou a escrever aquela riqueza toda, ele começa a pegar, as coisas começam-se a desenvolver. E aparece um outro fio, em que, com a riqueza do vocabulário e da terminologia, cria-se uma situação totalmente nova que dá o sentido à música".
E o resto, também é agora história: venceu o Festival de 1973 e na Eurovisão, no Luxemburgo, ficou num honroso 10.º lugar - o festival foi ganho por Anne-Marie David, a "voz de cristal" do Luxemburgo, com "Tu te reconnaîtras".
Para festejar os 50 anos, Tordo montou um espetáculo especial: este domingo no Teatro Tivoli, em Lisboa, e no dia 11 de março na Casa da Música, no Porto.
Nos concertos haverá mais músicas, convidados (Jorge Palma é um eles) e surpresas. "E, sobretudo, muito espírito positivo, apesar da época mais triste em que a canção surgiu, porque aqui também se celebra a memória", conclui o artista.