"1629", relato gráfico de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne, evoca um naufrágio e o posterior massacre dos sobreviventes, em dois duríssimos volumes de BD.
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A 28 de outubro de 1628, o "Jakarta" deixa Amesterdão. A bordo, entre tripulantes e passageiros que buscavam novas vidas, seguiam 322 almas, não penadas (ainda...) mas que iriam penar duríssimas penas, mais do que é humanamente possível imaginar. Mas, o mais relevante, eram os 300 mil florins em ouro e joias que a toda-poderosa Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC) nele embarcara para os seus negócios em Java.
Este é o ponto de partida de "1629... ou a história apavorante de um naufrágio", cujo segundo volume acaba de ser disponibilizado pela Arte de Autor numa edição aprimorada.
Se o objetivo já parecia condenado à partida, pelas profundas desigualdades entre oficiais e tripulantes e, entre estes e os passageiros, pelas crenças, vontades e aspirações díspares dos dois representantes da VOC, pelo tumultuoso feitio do capitão e pelo clima de suspeição, revolta e mesmo ódio latente que o contexto provocava, um naufrágio causado pelo explodir do conflito latente e pelo desejo de riqueza de parte de alguns, acabará por reduzir todos praticamente ao mesmo nível social. Ou, para melhor descrever o sucedido, por arrastar todas aquelas almas para os degraus mais baixos e esconsos da natureza humana, perdidas num conjunto de ilhotas inóspitas, quase sem condições de vida.
Dessa forma, "1629" assume-se como uma descrição aterradoramente realista, quer das inimagináveis faltas de condições de vida a bordo do navio, onde o capitão usurpa o lugar de um Deus sem amor, só impiedoso e castigador, quer do quotidiano na ilha, onde, mais uma vez, os desejos de poder e de riqueza, tristemente a par com um desejo de liberdade que perpassa por muitos, vai levar uma parte dos sobreviventes a perpetrar um abominável massacre.
Numa narrativa em que a violência, o sangue e o desprezo pela vida andam de mãos dadas com a submissão das multidões e a facilidade do olhar para o lado, Xavier Dorison e Thimothée Montaigne chocam e violentam o leitor horrorizado por aquilo que os seus olhos testemunham e mais pelo que apenas é sugerido à sua imaginação doentia, mas incapaz de desviar o olhar, arrastado por uma escrita insidiosa, visceral e desafiadora e por um traço realista que exibe a animalidade humana de forma crua e despudorada.