Livro póstumo de Gabriel García Márquez, "Vemo-nos em agosto" é uma obra débil a vários níveis, mas cativa pela tocante humanidade.
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É impossível lermos “Vemo-nos em agosto” sem que as contundentes palavras de Gabriel García Márquez sobre o mesmo – “este livro não presta; tem que ser destruído” – nos acorram de imediato.
O que terá estado na origem desta sentença cruel não terá sido tanto a perda da faculdade de julgar (como adiantaram os filhos do escritor na apresentação da obra para justificar uma publicação póstuma, no mínimo, questionável), mas uma outra, bem mais funda: a (auto)consciência do autor de que este é um livro a todos os títulos menor, sobretudo para quem ergueu universos literários tão grandiosos como “Cem anos de solidão”.
E, todavia, mesmo quando somos confrontados com as debilidades várias da obra (“as contradições”, apontadas pelo próprio, mas também o estilo menos polido do que o habitual ou a cedência a um certo facilitismo nas descrições amorosas), nem assim o leitor habitual de Gabo consegue subtrair o respeito quase reverencial pelo livro.
Por duas grandes ordens de razão, acima de tudo: pela gratidão que sentimos por tudo quanto o autor nos proporcionou através dos anos, mas talvez mais ainda pela importância que a escrita de “Vemo-nos” terá assumido na sua luta por manter-se ativo, mais concretamente na batalha que travou para a manutenção da memória, fonte inesgotável para as suas histórias feitas de encantamentos vários.
Em pleno outono da sua existência, o grande patriarca que foi García Márquez pode ter sido traído pelas fragilidades físicas, mas a arte de contador de histórias manteve-a até ao final. Essa capacidade de erguer notáveis enredos ficcionais aparece amiúde numa narrativa protagonizada por uma mulher a caminho dos 50 anos que, de modo inesperada, redescobre o quase esquecido desejo.
Mãe e esposa aparentemente realizada, Ana Magdalena Bach dá por si a desejar com ardor a chegada de agosto, mês em que visita o túmulo da mãe numa distante ilha caribenha e, cumprido o ritual, se entrega a um prazer inconfessável: dormir com um desconhecido.
Apesar de a liberdade com que se entrega ao jogo amoroso ser cada vez mais colocada em causa à medida que as memórias e o desencanto passam a acompanhá-la, os instantes em que se sentiu tocada pela graça de viver compensaram qualquer eventual arrependimento. À semelhança do que García Márquez terá experimentado na escrita da sua derradeira novela.
“Vemo-nos em agosto”
Gabriel García Márquez
D. Quixote