O rapper Allen Halloween comunicou, na sexta-feira, o fim da carreira musical, pouco depois de ter lançado um álbum e um livro. A decisão justifica-se com motivos de crença religiosa.
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A notícia poderá ter apanhado de surpresa os fãs daquele que é - ou era, até agora - um dos mais esdrúxulos e irreverentes rappers e produtores da cultura hip-hop em Portugal. Embora já há alguns anos manifestasse a intenção de um dia deixar de fazer música, Allen Pires Sanhá, natural da Guiné-Bissau e conhecido por Allen Halloween nas ruas e nos palcos, tinha editado novos trabalhos ainda recentemente. A decisão, tornada pública ontem, justifica-se com a relação com o seu Deus, figura constante das letras e poemas que começou a escrever na década de 90.
"Durante anos, tentei fazer música e servir a Jeová ao mesmo tempo mas isso sempre foi uma tarefa impossível para mim. Eu amo demais! Não consigo fazer nada por metade. Não consigo estar envolvido em nada que não seja a 100%", começou por escrever, na publicação que divulgou no Facebook e Instagram, entretanto eliminada na segunda rede, juntamente com a conta oficial.
O Halloween morreu. Acabou! Tornar-me-ei num homem simples e humilde
O autor de discos como "Projecto Mary Witch" (2006), "A Árvore Kriminal" (2011), "Híbrido" (2015) e "Unplugueto" (2019) entendeu por isso "que nenhum escravo pode servir a dois senhores ao mesmo tempo", porque apegar-se-á sempre mais a um enquanto ao outro dará desprezo. "Eu tenho vindo a desprezar o meu Pai há muito tempo e não o farei mais. Anuncio aqui o fim da carreira de Allen Halloween", avançou, com "coragem" e "fé", adiantando que a decisão agora exposta, e para a qual pede respeito, há muito que era pensada.
"O Halloween morreu. Acabou! Tornar-me-ei num homem simples e humilde, com um emprego humilde e guardarei todo o meu tempo para pescar almas para o meu Senhor", continuou, agradeceu aos que bateram estrada para o ver e o ouvir. "Foi forte! Foi puro! Fui lindo! Sem esquemas, sem truques! E que ninguém fique triste, porque eu estou feliz. Eu vou para um lugar muito melhor, melhor do que todos aqueles que os meus olhos viram até hoje. Um lugar onde eu realmente me sinto em paz".
Foi ainda este mês que Halloween lançou um livro com as suas letras - "Livre Arbítrio", também título de uma canção - na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. E também "Unplugueto", um disco semi-acústico que é uma narração da luta interior de alguém que só quer chegar a casa.
Figura máxima do Rap "underground" ("subterrâneo") em Portugal e símbolo de independência artística, numa altura em que a indústria musical absorve dinamicamente um género nascido e criado na rua, Halloween - o nome inglês alude ao Dia das Bruxas - deixou marca pelo seu estilo inconfundível, de uma voz grave, rouca e ligeiramente triste que se quis ouvir para descrever a vida no bairro do Barruncho, em Odivelas. E para narrar, com influências também do rock e do grunge, a metamorfose por que passou ao sair de uma vida de marginalidade sempre pronta a acolhê-lo outra vez. Envolto num universo fortemente poético e até de inspiração bíblica, Allen Halloween deixa como obra as batalhas de personagens complexas, heróis anónimos do quotidiano forçados a encarar provações diárias, em que a Bruxa, como personagem figurada, se tornou um papel central da identidade do rapper.