Já está nas salas “Longe da Estrada” de Hugo Vieira da Silva e Paulo Milhomens.
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Em 1903, o médico francês Victor Segalen chega ao Taiti para conhecer Paul Gauguin. Mas o pintor já tinha falecido. Baseado numa banda desenhada e nos escritos do próprio Segalen, este episódio verídico está na base de “Longe da Estrada”, que chega agora aos cinemas. A realização a quatro mãos, dividida entre Hugo Vieira da Silva, que lançara o projeto, e o seu colaborador Paulo Milhomens é explicada na conversa que mantivemos com os dois.
O projeto nasceu mais da leitura da banda desenhada ou dos escritos de Victor Segalen?
Hugo Vieira da Silva (HVS) – Eu estava na pós-produção do “Posto Avançado do Progresso”, um filme que também trabalha com as questões coloniais, e veio-me parar às mãos essa banda desenhada. Na altura li, porque vinha no contexto destas coisas coloniais e tinha uma coisa que me interessou fortemente, que era a questão da arte.
O Gauguin também o deve ter atraído.
HVS - O Gauguin sempre foi um tema interessante para mim. Um europeu no Taiti, a questão do exotismo. Estavam ali temas coloniais, da relação com o outro, com a diferença, e ao mesmo tempo já trazia a figura do Victor Segalen. E interessei-me pelos dois.
Já conhecia a personagem e os escritos do Segalen?
HVS – O Segalen não o conhecia bem. Comecei a ler tudo e de repente descobri ali, fortíssimo, uma figura com uma postura absolutamente contemporânea sobre o que é a relação com o outro. Isso interessou-me sob o ponto de vista da etnologia, das questões culturais, e relacionar isso com a arte, também. A questão da arte também está envolvida neste movimento colonial, de alguma forma. Tudo junto, quis pegar no filme mais pela perspetiva do Segalen.
Já era assim na banda desenhada?
HVS - A banda desenhada tinha essa estrutura. Uma invenção minha e da Claudia Bottino foi extirpar o Gauguin da história. A banda desenhada tinha-o o tempo todo, numa espécie de grande flashback. Nós estávamos muito descontentes com a presença do Gauguin, e de uma série de estereótipos a que podia conduzir, tínhamos de encontrar um ator e como o figurar. E houve essa ideia de repente, fez-se luz, e se o Gauguin estivesse fora? Porque na verdade o Segalen não chegou a conhecer o Gauguin.
Ao nível da escrita do guião, essa ausência do sujeito do filme colocou que problemas?
HVS – Obrigou a fazer muita pesquisa, de coisas que pertencem aquele mundo. O filme, nisso, é mais ou menos fidedigno. Toda esta construção levou a muita leitura de livros da época, de coisas etnológicas, de arquivos arqueológicos, de pesquisa histórica. Era isso que nós queríamos. Estamos a falar de um fantasma e da convocação dessa figura a partir de objetos mediadores. O pano dele, a camisa, os pincéis, todos esses elementos que estão dispersos pelo filme. As telas e a recriação das telas.
Paulo Milhomens (PM) - O próprio ateliê e as pessoas que o conheceram. O Gauguin náo está no filme, é sugerido numa cena, é de facto um fantasma, mas o Gauguin muita gente já o conhece. Já tem uma ideia, pelo menos, de quem ele é e que imagens produziu.
Da experiência que tiveram in loco diriam que a França é ainda um país colonial?
HVS – Eu tenho de dizer que o filme foi feito da seguinte forma: eu fiquei muito doente, muito próximo da rodagem, o que me impediu de ir fisicamente ao Taiti. E nessa altura convidei o Paulo para trabalhar comigo. Trabalhámos na fase final de preparação e depois de forma remota. Fisicamente, foi o Paulo que esteve no Taiti.
PM – Para começar, os franceses continuam a utilizar uma linguagem que para nós é um bocadinho chocante. Continuam a dizer o ultramar. São as províncias ultramarinas. Acendem-se logo uma série de campainhas. Depois há a presença de cidadãos nascidos no hexágono francês que vão fazer a sua vida para lá. Os edifícios públicos têm a bandeira francesa e a bandeira europeia. Pode jogar-se ao Euromilhões e vai-se ao supermercado comprar queijo e vinho franceses. E isso faz parte da vida do Tahiti.
Sentiu alguma reação local a essa situação?
PM - Metade da equipa era de lá. Isso permitiu-me contactar diretamente com muitas pessoas. Percebi que há, da parte da juventude, um certo desejo de afirmação cultural própria. Mas é um bocadinho trágico, no sentido em que é reinventar uma tradição que desapareceu, uma cultura que foi completamente obliterada. Não só pela dominância da cultura francesa. Em cada esquina há uma igreja protestante, por exemplo, que vem de outros sítios, de uma influência anglo-saxónica.
E as gerações mais velhas, como olham para isso?
PM - Tive oportunidade de falar com pessoas mais velhas, com um conhecimento profundo da história, como um especialista que entretanto morreu e cuja tia conheceu o Gauguin. Dávamos as mãos a duas pessoas e de repente estávamos no Gauguin. Viam isto como uma profunda tragédia, esta aniquilação da identidade cultural de um povo, reduzida a uma espécie de fetiche comercial e folclórico. O filme também é sobre isto.
O Gauguin já teve essa perceção quando lá esteve?
HVS – O Gauguin idealizava o Taiti como um território virgem, com uma cultura autónoma, autêntica, e não era. Era já um território colonizado, mesmo muito antes dele lá ter habitado. E o Gauguin descreve a sua profunda desilusão nos seus escritos, por todos falarem francês, os rituais estarem todos a desaparecer, os padres católicos não os permitirem. E vai para Hiva’Oa, à procura de uma utopia, de um lugar que não existe.
PM – Para se ter uma ideia, de Papeete, capital do Taiti, até Hiva’ao, são três horas e meia de avião. São distâncias enormes. É uma ilha muito pequena, muito agreste, que não tem nada a ver com o postal ilustrado que possamos convocar quando se pensa no Taiti. O mar é muito alto, as rochas são escarpadas, isso vê-se no filme. Claro que quando os franceses, nos anos de 1990, decidem fazer testes nucleares lá, as pessoas ficaram muito desagradadas, para dizer o menos.
Visualmente, conversas tiveram com o diretor de fotografia? A maior influência foi o estilo da banda desenhada, a estética do Gauguin?
HVS – A ideia que está subjacente ao filme é muito mais intelectual. Tem a ver com a aproximação do próprio Victor Segalen à questão da cultura e da natureza. De colocar em causa este sentido de puro, de virgem, de fantástico, que poderá ser o território exótico. O Victor Segalen constrói uma crítica do exotismo. Os formatos mais panorâmicos pareceram-nos que iam contra essa ideia. E também em termos cromáticos e na escolha das coisas, procurámos um certo realismo, uma certa realidade das coisas.
PM – No Taiti, aponta-se a câmara, põe-se a câmara no tripé e de repente há uma coisa espantosa à nossa frente. Uma pessoa entra na água com os óculos e vê um aquário, o pôr-do-sol passa de repente do cor-de-rosa ao roxo, passando por aqueles azuis todos que possamos imaginar. Mas isso também nos colocava um problema. Tal como o Segalen critica o exotismo, nós também tivemos de lutar um bocadinho contra isso.
Os atores locais também contribuem para esse tom de realidade.
PM - Temos três atores profissionais no filme. O resto são pessoas do Taiti, algumas com experiência de serem atores lá, mas outros não. Temos uma professora de ginástica, um lavrador. A nossa figuração trouxe também a realidade da vida.
O filme permite hoje uma releitura da obra de Gauguin?
HVS – Eu convido mesmo as pessoas a voltarem a ver as pinturas do Gauguin, ou o seu trabalho serigráfico e gráfico, porque é tudo menos exótico. É uma redução das coisas à sua essência e à sua simplicidade, exatamente contra o lugar-comum. Porque se olharmos para os pintores do exotismo do fim do século XIX princípio do século XX, então aí temos os rosas, as cores fabulosas.
PM – As cascatas… É verdade que o Gauguin consegue reinventar a sua pintura naquele sítio. E é tão marcante que se torna o pintor que nós conhecemos, goste-se ou não. Mas de uma profunda originalidade. E um desejo de ir aos fundamentos básicos do que estava a fazer. O Gauguin é um artista, também esculpia, fazia tudo com as mãos, e muito tardio, começa a pintar aos trinta e muitos anos.
No final do filme vemos uma fotografia do próprio Victor Segalen. E descobrimos que o Antoine de Foucauld é igual. Foi por essa semelhança que o escolheram?
PM – Ele tornou-se igual. É muito jovem, é a sua primeira experiência no cinema, apesar de ter uma formação académica impecável. Entregou-se completamente ao filme. E foi muito forte durante a rodagem assistir à sua transformação, física quase, no Segalen. De tal forma que ao segundo dia já não o chamavam de Antoine, mas de Victor. E ele respondia.