Se da herança genética não se pode fugir, também no flamenco a tradição familiar parece ditar os moldes em que os músicos vão nascer. David Peña Dorantes, "a joia do piano flamenco", está em Portugal, para dois concertos: hoje, na Casa da Música, no Porto, onde nunca tocou, e amanhã na Aula Magna, em Lisboa, a convite do Festival de Flamenco.
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Dorantes pertence a uma das famílias de artistas ciganos mais conhecidas das últimas décadas. É neto de Maria "La Perrata", importante cantaora (com denominação de origem de Utrera), filho do guitarrista Pedro Peña Fernandez e sobrinho do mítico cantaor "El Lebrijano" . "O flamenco de berço não é essencial, podes estudar e fazer disso a tua vida, mas é uma vantagem incrível, que se nota como intérprete, porque tens um sabor diferente visível em tudo, até na forma como caminhas. É uma filosofia de vida", explicou ao JN, pouco depois de aterrar na Invicta.
Dorantes é consensualmente dono de uma técnica sublime e muitas vezes comparado ao guitarrista Paco de Lucía, pela sua obsessão com o virtuosismo. "Em casa tínhamos 14 guitarras. Eu invariavelmente comecei por aí, mas quando ia a casa da minha avó, o piano era a minha perdição. Um dia o meu pai entrou numa carpintaria para comprar uma cama e o homem tinha para lá uma pianola de 1910. Perguntou se o meu pai não a queria levar. Ele, como sabia que eu gostava muito, trouxe-a para casa e foi a apoteose", recorda, emocionado. Durante muitos anos, tocou guitarra em recitais de flamenco, a acompanhar cantaores. Sempre com o propósito de fazer dinheiro para comprar um piano "a sério" e tocar no conservatório em que se formou.
Um piano no flamenco
Até à chegada e triunfo de Dorantes, o piano era um instrumento que vivia afastado do flamenco, que se baseava em guitarra, palmas e voz. Mas em 1998, tudo muda quando concebe o tema "Orobroy", com um coro de crianças a cantar em caló - dialeto cigano da Península Ibérica - com o qual ganhou sete prémios. No Porto, o tema será interpretado pelo coro infantil Lira. "Houve um tempo em que me cansei de "Orobroy", chegava a ficar irritado porque havia músicas que considerava muito mais difíceis harmonicamente e menos conhecidas. Mas com o passar dos anos percebi que a emoção é o mais importante", comenta.
Nos concertos em Portugal, vai interpretar o repertório de "El tiempo por testigo", disco que comemora os seus 20 anos de carreira e que traz sete regravações. "Escolhi esses temas porque foram determinantes na minha vida, como "La danza de las sombras", dedicada ao meu pai e à aldeia onde vivia.
Dorantes tem uma profícua colaboração com músicos de jazz como Chick Corea, Ara Malikian ou Wim Merten. Mas há uns meses que diz ter "vontade de experimentar fado".
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O Festival de Flamenco de Lisboa nasceu em 2008. Onze anos depois de algumas tentativas goradas, realiza em 2019 a sua primeira edição no Porto, sob o mote "Tradição e vanguarda". À Invicta, o certame ainda vai levar, além do concerto de Dorantes, a peça "Guerrero", do bailarino Eduardo Guerrero, no dia 25 de novembro, na Casa da Música. O espetáculo repete também em Lisboa, na Aula Magna, no dia 29 de novembro, encerrando uma série de iniciativas que teve este ano em Portugal. Além das performances, o grande público pode ainda ver a exposição de fotografia itinerante "Noches de luna llena".