Segundo dia do festival arrancou no Parque da Cidade do Porto com canções de intervenção e muito povoado
Corpo do artigo
Num palco que se quer trincheira, A Garota Não empunha a palavra como se fosse lâmina e a guitarra como se fosse coração. Subiram ao palco quatro corpos, mas foram muitos mais a habitar aquele espaço. Guitarra, baixo, bateria, e ela — que não é só ela, é multidão. Começa com "A Grande Máquina" e logo sentimos: isto não é só música, é manifesto, é chamamento, é soco e colo.
"Falemos das cartas”, pede-nos, e falamos. Mas falamos também dos silêncios — aqueles que se impõem quando matam mais um rapaz e fazem de conta que foi o destino. Mas não. A Garota Não. Porque há quem cante para lembrar e há quem cante para nunca esquecer. Palmas, muitas. Palmas que não são só aplauso — são também resistência. Entre temas novos e medleys dos discos anteriores, a voz dela agarra-nos: "Que mulher é essa que eu vejo na publicidade? Será que as feias vivem todas na minha cidade?" — ironia como quem cospe no chão da estética imposta. E logo aponta o dedo: "Esta é para o nosso novo Governo". Não se esconde. Nunca se escondeu. "Podem decretar o fim da arte / É como decretar o fim da chuva". Há sempre alguém que sonha. Há sempre alguém que canta quando tudo o resto se cala.
E rimos também. Porque entre denúncias e dores, há espaço para o sarcasmo afiado: "A sede do Chega" — e o público ri, ri como quem sabe que rir é também um ato político. "Eles andam a roubar há 50 anos, deem-me uma oportunidade de roubar também." Ironia ou verdade nua? Declama Eugénio de Andrade como quem grita um poema do fim do mundo: "É urgente o amor. É urgente." Urgente como cada acorde. Urgente como a vontade de não baixar os braços. "É urgente destruir certas palavras" — e ela destrói-as. E depois reconstrói, com outras, mais nossas.
Em "Dilúvio", junta-se a Diogo Sousa, João Mota e Sérgio Mendes — três cúmplices, três intensidades. Uma tempestade de som e sentido. E como é que se termina um concerto que não quer acabar? Com "Ferry Gold". Privatize-se tudo — mas não a liberdade. "Privatize-se tudo e também a p*** que os pariu a todos", grita ela, e todos gritam com ela. Porque quando A Garota Não fala, até o silêncio se levanta para ouvir.