O Festival Lumière, terminado há dias em Lyon, mostrou raridades de todo o mundo, incluindo uma cópia restaurada do quase esquecido "As Ilhas Encantadas", de Carlos Vilardebó.
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Arte já mais do que centenária, “inventada” pelos irmãos Lumière, quando fundiram algumas descobertas anteriores na projeção de filmes em sala, a um público pagante, o Cinema tem sido amplamente estudado, em livros, escolas, conferências, teses universitárias ou mesmo através do próprio cinema.
Julga-se, assim, que se conhece bem o cinema, perspetiva ancorada numa partição do corpo fílmico existente desde 1895 em movimentos ou escolas como o expressionismo alemão, o neo-realismo italiano, a nouvelle vague francesa ou o free cinema britânico ou, mais recentemente, o novo cinema romeno ou argentino – e mesmo o português – ou as novas vagas asiáticas.
Há já década e meia que o Festival Lumière se realiza em Lyon, precisamente no local onde os Lumière viveram e rodaram o primeiro filme. Um dos muitos festivais, talvez mesmo o mais importante, que hoje um pouco por todo o mundo se dedica ao cinema do património, exibindo cópias novas ou restauradas de filmes clássicos, muitos fazendo parte do imaginário coletivo, é certo, mas proporcionando também magníficas descobertas que, apesar de não colocarem em causa a “história oficial”, nos mostram que há ainda muito por descobrir, classificar e, sobretudo, fruir.
Uma passagem pela 15ª edição do Festival Lumière, terminada há alguns dias na cidade francesa, permitiu identificar uma dezena dessas raridades, que aqui se partilha com o leitor, por ordem cronológica da sua produção. A descobrir, num cinema ou numa plataforma perto de si.
The Manxman
Alfred Hitchcock, Inglaterra, 1929
Hitchcock é conhecido como o mestre do suspense e sobretudo pelos seus clássicos americanos, como “Os Pássaros”, “Janela Indiscreta” ou “Vertigo/A Mulher Que Viveu Duas Vezes”. No entanto, não só já era um realizador de capacidades mais do que reconhecidas quando foi chamado por Hollywood, no final dos anos de 1930, como a sua filmografia inclui também vários filmes do período mudo. Curiosamente contemporâneo de um clássico português onde se encena um drama amoroso no quadro de uma aldeia piscatória, “The Manxman” adapta um romance sobre um triângulo amoroso, tecido entre dois amigos e a mulher que ambos amam. Exibido em Lyon com música ao vivo, executada num órgão no Auditório de Lyon, o filme revela-nos desde logo um mestre da narrativa, tão forte na tragédia como mais tarde no drama criminal. Um Hitchcock a descobrir pelas novas gerações de cinéfilos.
Dragnet Girl
Yasujiro Ozu, Japão, 1933
Descoberto há já algumas décadas, embora tardiamente em relação ao que já se conhecia de outros grandes mestres japoneses, como Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa, o nome de Yasujiro Ozu é hoje considerado uma das referências mundiais, estudado em muitas escolas de cinema pelo seu rigor cinemático, pelo retrato do Japão que o seus filmes proporcionavam, pela delicadeza com que abordava os mais simples dramas humanos. Conhecido mais pelas suas obras finais, como “Primavera Precoce”, “Viagem a Tóquio” ou “O Gosto do Saké”, a descoberta em Lyon deste filme, um dos derradeiros do mudo japonês, numa cópia assombrosa e com acompanhamento ao piano, e um filme de gangsters, um pouco “à americana”, sobre o processo de redenção de um pequeno criminoso, ajudado pela namorada – a genial Kinuyo Tanaka – é perceber o quanto, e felizmente, há ainda tanto para descobrir.
Sazen Tange and the Pot Worth a Million Ryo
Sadao Yamanaka, Japão, 1935
Faleceu em 1938, na frente da Manchúria, durante a guerra entre o Hapão e a China, poucos dias depois de completar 28 anos. No curto espaço de seis anos, tinha realizado vinte e seis filmes, dos quais apenas três sobreviveram. Diz-se que influenciou à época toda uma geração de realizadores japoneses, mas é praticamente desconhecido nos dias de hoje. Este título sobrevivente é um filme de samurais, mas com imenso humor à mistura e onde a principal personagem acaba por ser um pote, que passa de mão em mão, depois do seu herdeiro não ter sabido que encerrava o segredo de uma fortuna.
A Hometown in Heart
Yoon Yong-gyu, Coreia, 1948
Com apenas nove filmes realizados, entre esta obra iniciática e 1980, Yoon Yong-gyu não beneficiou da mesma descoberta no ocidente a que tiveram direito vários outros cineastas coreanos. Filmado pouco depois da cisão do território em dois países, a ação do filme situa-se num templo budista, no alto de uma montanha, onde um jovem órfão atrai o interesse de uma jovem mãe que ali passa para fazer o luto da morte do seu filho. Mas a mãe biológica do rapaz também aparece. O garoto terá finalmente de escolher entre a rigidez das normas religiosas e a descoberta do mundo para além das montanhas. Para além do retrato do dilema do jovem, magnificamente interpretado pelo protagonista, o filme é uma das raras críticas em filme a uma religião budista que, como as outras, tem também os seus códigos, ortodoxias e regras invioláveis.
Con la Vida Hicieron Fuego
Ana Mariscal, Espanha, 1959
Na sua rúbrica História Permanente das Mulheres Realizadoras, o Festival Lumière prestou este ano atenção à espanhola Ana Mariscal. Atriz muito popular nas décadas de 1940 e seguintes, fundaria a sua própria produtora e assinaria uma dezena de obras, algo raro para uma mulher, à época, em Espanha como em qualquer outro país. Dos filmes exibidos em Lyon, destaca-se claramente esta variação sobre a Guerra Civil espanhola, num equilíbrio possível entre o papel heróico de um soldado franquista e a evocação emotiva das vítimas do lado republicano, que reflete a posição “neutral” da realizadora. Mas o que conta é o talento visual e plástico que envolve a história deste herói que regressa rico da América para casar na terra natal, cruzando-se com a viúva de um homem fuzilado durante a guerra.
As Ilhas Encantadas
Carlos Vilardebó, Portugal, 1965
Entrada portuguesa na seção Tesouros e Curiosidades do Festival Lumière, tratou-se da cópia restaurada deste filme “esquecido” da produção cinematográfica portuguesa. É a única longa-metragem do realizador, nascido em Portugal mas cedo ido com a família para França, onde fez carreira sobretudo no filme publicitário e institucional, e á uma das raras aparições de Amália Rodrigues no cinema sem fazer o papel de fadista. Produzido por António da Cunha Telles e rodado na ilha do Porto Santo, adapta um texto de Herman Melville e conta a história de uma mulher a viver sozinha numa ilha e a sua relação com um marinheiro estrangeiro. É uma obra de rara beleza plástica e onde Amália mostra em todo o esplendor a espantosa relação que mantinha com a câmara.
Thieves Like Us
Robert Altman, EUA, 1974
Para nós, portugueses, é uma raridade, pelo simples facto de quem apesar da notoriedade do realizador e de um elenco composto por muita gente popular à época, como Keith Carradine e Shelley Duvall, nunca ter estreado em sala entre nós. Filme de 1974, deve ter ficado esquecido nas prateleiras de algum distribuidor, mais preocupado à época, em plano PREC, em estrear filmes de componente mais política. O filme acompanha um grupo de assaltantes de bancos, na América rural da Grande Depressão, muito ao estilo de “Bonnie e Clyde”, baseando-se aqui numa obra ficcional que já dera origem a um clássico de Nicholas Ray. Um filme de um grande realizador americano que é urgente ver em sala, na belíssima cópia nova mostrada em Lyon.
Dangerous Encounters of the Third Kind
Tsui Hark, Hong Kong, 1980
Tsui Hark é, definitivamente, um nome a resgatar. Os cinéfilos mais amantes do cinema de ação e com mais idade lembram-se de quando, na década de 1990, andavam à procura nos videoclubes de filmes deste género oriundos de Hong Kong e de como vibravam com a obra deste realizador. França, já através de Cannes e agora do Festival Lumière, já o resgataram, enquanto membro de uma nova vaga do cinema de Honk Kong, entre o classicismo dos filmes de kung-fu e o fim da identidade específica do território, após 1997. Este filme mostra como é urgente a sua reclassificação. A sua violência sem freio (auto)censório ancora-se numa denúncia social, mostrando pobreza, miséria e luta pela sobrevivência onde antes só se falava de alta finança e colocando três jovens irreverentes na rota de uma máfia do crime organizado. De perder o fôlego, mas ansiar por mais.
Maybe Tomorrow
Judit Elek, Hungria, 1980
O cinema húngaro do período imediatamente anterior ao fim da União Soviética e da respetiva influência política sobre este país do leste europeu era apesar de tudo o mais vivo, irreverente e criativo de toda a região. Muito por “culpa” de uma série de grandes cineastas que coincidiram no tempo, como Milos Forman, depois exilado no ocidente, Miklos Jancso ou Marta Meszaros. Como esta, Judit Elek representa um dos bons nomes de um cinema no feminino que se destacava muito antes do tempo do #metoo, e é também urgente resgatá-la de um certo esquecimento. Neste filme, acompanhamos um casal que se encontra regularmente num apartamento de Budapeste, numa relação que para ambos é extraconjugal. Retrato íntimo e ao mesmo tempo de um tempo e de uma sociedade, é também um filme de atores, de fotografia. Mas sobretudo de uma realizadora de enorme talento.
A Tale from the Past
Dhimiter Anagnosti, Albânia, 1987
Um dos países mais fechados da Europa pelo regime instaurado após o final da Segunda Guerra Mundial, a Albânia não é propriamente conhecida pelo seu cinema. É pois de assinalar esta descoberta, uma verdadeira raridade, com um poema tradicional local a ser adaptado à vida contemporânea de uma pequena localidade, num registo de fantasia, mas falando de coisas muito sérias. No fundo, trata-se de uma crítica, mordaz mas contundente, das práticas vigentes dos casamentos forçados, com a história de uma jovem de 20 anos, apaixonada por um belo rapaz das redondezas, mas obrigada pela família a casar com um rapaz de 14 anos, filho de uma família abastada da aldeia.