<p>Despediu-se da vida serenamento, asseguram os que o rodeavam, num estado de paz interior semelhante ao que sempre afirmou ser o seu conceito de felicidade: "Dar passos rumo a si mesmo". Às 12.30 horas de ontem, José Saramago falecia na sua residência, em Lanzarote, Espanha, vítima de uma "falência múltipla dos órgãos". Será cremado em Lisboa amanhã. As cinzas vão ficar em Portugal.</p>
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Despediu-se da vida serenamento, asseguram os que o rodeavam, num estado de paz interior semelhante ao que sempre afirmou ser o seu conceito de felicidade: "Dar passos rumo a si mesmo". Às 12.30 horas de ontem, José Saramago falecia na sua residência, em Lanzarote, Espanha, vítima de uma "falência múltipla dos órgãos". Será cremado em Lisboa amanhã. As cinzas vão ficar em Portugal.
Com 87 anos e uma obra de dimensão universal sem paralelo recente na literatura de língua portuguesa, despediu-se dos romances em 2009 com o polémico "Caim", que, talvez prenunciando a morte cada vez mais próxima, terminava, anunciando que "a história acabou, não haverá nada mais que contar".
Gravemente enfermo há longos meses, tentou ainda iludir a morte até à última, mantendo os hábitos de sempre, com a escrita em lugar de destaque. Do novo e inacabado romance deixou concluídas quase meia centena de páginas, lidas há pouco dias pelo seu editor de sempre, Zeferino Coelho.
Quixote contemporâneo
Numa luta contra o tempo que sabia estar perdida desde o início, empenhou-se, de há vários anos a esta parte, em corresponder a quase todas as solicitações que lhe chegavam de toda a parte, como se procurasse testar também os limites da resistência física.
Qual Quixote dos tempos modernos, envolveu-se em múltiplas causas, colocando a literatura ao serviço do empenho cívico.
Sem jamais abdicar de uma consciência ética acutilante, ganhou tantos admiradores como inimigos. E aos que o acusavam de procurar polémicas, respondia, sem hesitar: "Sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e a pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando me saem monstros".
Quando o abrandamento da actividade seria porventura a atitude mais aconselhável - como sucede com a esmagadora maioria dos laureados do Nobel -, Saramago fez questão de ir à luta até ao fim. A torrente de críticas desencadeadas pelo seu último romance prova-o à saciedade, mas, de então para cá, o romancista manteve-se acutilante, sobretudo enquanto "bloguista".
Num dos últimos comentários deixados no blogue "Caderno" - cujo segundo volume foi publicado há poucos meses - deixou um derradeiro comentário (extraído de uma entrevista concedida em 2008 à revista do semanário "Expresso") que pode, sem dificuldade, ser lido de forma quase testamentária: "Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma".
O reconhecimento tardio do seu imenso talento ajuda a explicar, em parte, a energia infatigável. A glória chegou mais de quatro décadas depois do livro inaugural, "Terra do pecado", mas não se pense que o escritor, cujas origens humildes foram eleitas pelo próprio como um factor determinante para o sucesso, abandonou os sonhos literários, mesmo quando foi obrigado a adiá-los 'sine die', desempenhando múltiplas actividades, de torneiro-mecânico a tradutor, crítico literário, editor e jornalista.
A recente exposição "Consistência dos sonhos" provou que Saramago sempre soube o caminho a seguir. "Ele costumava dizer que 'o que tiver que ser meu a seu tempo o será'. As coisas haveriam de acontecer a seu tempo. E foi o que sucedeu", recordou, ao JN, o director do "Jornal de Letras", José Carlos Vasconcelos, que destaca ainda o "dom extraordinário" do amigo: "Escrevia com uma rapidez extraordinária. Interiorizava o que queria contar e depois escrevia sem emendas".
Dois dias de luto
Com Portugal, manteve uma relação tempestuosa, própria dos grandes amores. Os comentários críticos ao estado actual do país, as suas posições pró-iberistas, estiveram longe de gerar consenso, mas que o autor não se eximia, em nome de uma liberdade individual que colocava acima de tudo.
O Governo, em reunião extraordinária do conselho de ministros, decretou dois dias de luto nacional, cumpridos hoje e amanhã, em memória do "principal responsável pelo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa".