Depois de "Ao som do fado", no estertor da ditadura, Nicolas Barral volta a Lisboa ao encontro de Fernando Pessoa.
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Novembro de 1935, adivinha-se o fim da vida de Fernando Pessoa e o "Diário de Lisboa" encarrega Simão Cerdeira, um jovem com aspirações a escritor e jornalista, de preparar o obituário do poeta. Para isso, contacta familiares, amigos e conhecidos, e investiga o seu percurso, os tempos da revista Orfeu, o presente... Um profundo respeito inibe-o de contactar directamente o poeta, embora se atreva a segui-lo.
O que ele não sabe é que, em segredo, Pessoa prepara a própria morte. Num misto de desencanto, inquietude, receio e perplexidade, tenta decidir o que fazer aos seus heterónimos: assumir de vez a paternidade dos seus escritos, deixar que vivam à sua sombra ou dar-lhes a liberdade de terem existência própria.
É esta a base de "O desassossegado senhor Pessoa", um belo tributo ao autor de "Mensagem", que tem edição recente da Levoir e autoria do francês Nicolas Barral que, como já tinha feito em "Ao som do fado", ambientado no estertor da ditadura, volta a usar Lisboa como palco de um romance gráfico, aqui com uma belíssima reconstrução da capital nos anos 1930, perfeitamente reconhecível como lugar real e não um artifício vazio para tornar mais cativante a obra.
O relato avança a dois tempos: por um lado, através da investigação de Cerdeira, metódica, dedicada, assertiva; por outro, com o acompanhar de Pessoa e das suas rotinas quotidianas. Desta forma, vamos conhecendo progressivamente a sua biografia mas também o desenvolvimento da sua concepção literária que faria posteriormente a sua glória. Barral permite-se alguma liberdade ficcional, no ajuste de personagens e situações às exigências da narrativa, sem que que isso de algum modo choque ou subverta a verdade histórica, balizada por factos, explicações e referências introduzidos de forma leve e natural, sem prejuízo do ritmo de leitura.
A utilização de pranchas de tom único para marcar os retrocessos que a narrativa faz ao passado, ajuda o leitor a fruir de forma mais completa esta narrativa, fiel a Pessoa, à sua obra, à sua vida e aos seus heterónimos, num acompanhamento respeitoso e sensível dos seus últimos dias.