Ao quinto disco, a rapper do Porto alterou a forma de compor. E de ver. O resultado é autoritário: emancipou-se.
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“Um gelado antes do fim do mundo”, diz-nos Ana Fernandes, a reconhecida Capicua, é um convite duplo (e quase antagónico): o mundo está distopicamente perto do fim, mas ainda há tempo para apreciar o belo. Para a rapper e letrista, além do exercício de análise “do nosso tempo” e do mal que nos rodeia, o seu 5.º álbum de originais deu-lhe uma preciosidade soberana: a liberdade que nunca tinha experimentado.
Onde nasceu a vontade de um disco tão distinto?
Fiquei com vontade de experimentar mais com o Luís [Montenegro] quando trabalhamos juntos na versão “Que força é essa, amiga”. Ele domina várias dimensões, das formas eletrónicas aos instrumentos mais profissionais, digamos, a guitarra, piano e outros. Nasceu nesse trabalho a vontade de continuar a compor dentro dessa lógica de misturar o que eu já fazia com instrumentos.
Mudou o processo criativo?
Até este disco, costumava escrever sempre para beats que estavam pré-feitos. Fazia uma recolha de beats de vários produtores, escrevia as letras e depois fazíamos o arranjo a partir das letras, mas sempre dentro daquela quadrícula do beat. Este novo processo é muito mais orgânico e experimentado, porque tanto vinha com uma melodia, e pedia ao Luís para a concretizar, como desfazíamos um beat até ao osso e começava daí.
Esperava este resultado?
Sempre fui um bocado “control freak”, muito envolvida na parte de customização dos beats à medida da minha letra. O que é diferente neste disco é que às vezes, ao contrário do que é meu costume, a ideia partia da palavra, do poema ou da melodia da voz, em vez de partir do beat ou do instrumento. Para mim, este é um álbum mais experimental, além do ponto de vista do registo vocal, no sentido em que, ao contrário de outros discos em que o bloco de rap é o centro da canção, neste ando sempre a circular entre a voz cantada, “rapada” e declamada.
O que encontrou nesta nova forma de criar?
Mudar o método mudou o resultado e a experiência até lá chegar. Permitiu-me ter uma liberdade de experimentar que nunca tinha sentido.
É tudo novo ou havia algo na gaveta?
Tirando a versão da “Estrela da tarde”, que é uma letra exigente e que tive o atrevimento de transformar numa canção de rap, todas as outras, exceto uma mais emocional, falam do nosso tempo e estão muito ancoradas na realidade e na atualidade, naquilo que são os ventos do fim dos nossos dias. Não faria sentido ir buscar coisas à gaveta porque este é um disco sobre o que estamos a viver agora.
Porquê um gelado antes do fim do mundo?
Esta frase já me acompanhava há muito. Estive até à última à procura de um título para o disco e esta frase estava sempre ali no canto. Achava que definia o espírito do disco, mas estranhava que não fosse o nome de uma canção. Mas contém as duas grandes ideias do disco. Por um lado, a sensação de fim do mundo, essa coisa angustiante e distópica que os nossos tempos contêm. E, por outro, a ideia do convite à contemplação, a uma pauta para renovar os votos com o lado poético da vida, com o encantamento – que nos permite ter esperança no futuro e resgatar a nossa humanidade.
Usou o mesmo título como curadora numa exposição: os momentos estão ligados?
Não consigo precisar quando é que a frase me apareceu na cabeça, mas escolhi-a para essa exposição com a mesma ideia, como um reflexo dessa sensação simultânea de apocalipse e de esperança na luta pelo futuro. Os últimos anos têm sido marcados por uma tensão crescente.
Esse disco resume essa tensão?
É uma espécie de grande guarda-chuva deste tempo. Ao reler as minhas crónicas para o JN, percebo que há temas recorrentes, que regressam com outros ângulos, mas que estão sempre na ordem do dia. Foi a partir dessa análise que decidi o que seria o álbum em termos temáticos.