Valter Hugo Mãe regressa com "Deus na escuridão", um luminoso romance sobre a árdua aprendizagem do amor.
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É no território do deslumbramento que devemos situar o romance com que Valter Hugo Mãe (VHM) assinala a vintena de anos decorridos desde que se estreou no género, através de “O nosso reino”. Essa inscrição nem se deve tanto ao desenrolar da história na ilha de encantos vários que é a Madeira, mas sobretudo ao fortíssimo impacto gerado no leitor.
Se a escrita de VHM sempre carregou essa busca imanente pela pulsão vital, agora, ao décimo romance, ela surge-nos como que metamorfoseada, sem que se possa falar, todavia, num corte radical face a tudo quanto já escreveu. Mantendo o poderoso imaginário visual e lexical, “Deus na escuridão” é, antes de mais, um tratado de humanidade sobre o vínculo maior que é o amor, equiparado a uma força divina.
A convocação de Deus vai, por isso, além do título, entrando pela narrativa adentro como uma demonstração da evidência de que Ele não é, afinal, uma entidade abstrata, antes se condói com a consciência da sua vulnerabilidade.
Numa das passagens mais impressionantes da narrativa, logo na abertura da segunda parte, VHM escreve que “Deus é exatamente como as mães. Liberta seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença dos filhos”.
O amor incondicional a que o escritor se refere aparece-nos no livro plasmado em duas figuras marcantes, os irmãos Pouquinho e Felicíssimo. A condição débil do primeiro, um “menino sem origens”, desperta no mais velho uma vontade de proteção que leva ao extremo. Como se o afeto entre irmãos não fosse suficiente, devota-lhe um amor só passível de ser encontrado nas mães, subordinando a sua própria felicidade ao bem estar do outro.
As iniquidades e malfeitorias praticadas entre os homens, em que tantas vezes assentam os romances do autor de “A máquina de fazer espanhóis”, dão desta feita lugar a um registo que abraça com vigor a luminosidade, expressa na capacidade de entrega ao outro. Vemo-lo não apenas na dupla central da história, mas também no ambiente social e humano reinante no Campanário, a pequena localidade da Ribeira Brava em que decorre o livro. À solidão que muitos associam à vida na ilha, respondem os seus habitantes com uma sentido comunitário de fazer inveja às principais urbes.