Provocador, sarcástico, turbulento: assim é Gervais e o novo espetáculo que o trouxe a Portugal pela segunda vez, ao início da noite desta quinta-feira, perante uma sala lotada. “Mortality” volta a ser uma lição viva sobre como podemos rir às gargalhadas do que mais nos assusta ou até choca. E está tudo bem.
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Se a arte é subjetiva, a arte do humor ainda o é mais. Embora haja parâmetros comuns, as piadas que para uns resultam, para outros podem não resultar; o que certas pessoas consideram excessivo ou ofensivo, outras acham genial. É por vezes uma questão de gosto, de referências, mas nos últimos tempos é muito mais: nunca esteve tão aceso o debate sobre os limites da comédia, se devem existir, o que é certo, errado, excessivo. Na cultura de cancelamento, como consegue o humor sem barreiras – muito pelo contrário, confrontador, por vezes a parecer deliberadamente contracorrente e chocante–, subsistir? Com Ricky Gervais, consegue.
É difícil sair de “Mortality”, o espetáculo que trouxe esta quinta-feira um dos humoristas mais famosos do mundo pela segunda vez a uma sala portuguesa, sem estas (e muitas outras) reflexões. Durante pouco mais de uma hora – o especial é relativamente curto, cerca de 70 minutos, como alguns dos anteriores – perante uma Meo Arena há muito esgotada (os bilhetes desapareceram depois de serem colocados à venda) e logo rendida, Gervais fez rir, afrontou, criou desconforto, espanto e fê-lo com um jeito único, só seu.
Logo à entrada na sala, entre a massa humana de pessoas a acorrer para um espetáculo a uma hora em que muitos portugueses ainda não jantaram, o ambiente era de enorme agitação. A primeira parte foi garantida por Sean McLoughlin, humorista irlandês que se tornou conhecido em vlogues e que trouxe temas entre o mundano e o limiar do mais chocante, do casamento à inflação, das diferenças entre Portugal e o Reino Unido às suas impressões de Lisboa. Bem acolhido, anunciou espetáculos em nome próprio para capital e para o Porto, em junho. “Nem precisam de ir, só têm de comprar bilhete porque eu preciso do dinheiro”, brincava no final.
Perante um público incrivelmente transversal em idades, gerações e estilos, Radiohead, The Smiths e David Bowie a tocar no intervalo, “What a Wonderful World” de Louis Armstrong nos imediatos segundos antes, Gervais entrou em palco. Marcado para as 20.05 horas, o britânico começou apenas cinco minutos mais tarde – portas e bares fechados, pedido para telemóveis desligados e zero filmagens, o ruido sonoro e visual de fundo ao mínimo possível num espetáculo onde não há imagens, sons, música: mas um homem em palco, de t-shirt preta, a falar.
Desde o primeiro momento, ao vermos Gervais finalmente ao vivo, depois de tantas séries e especiais da Netflix, depois de “After life”, “The office” ou “Extras” povoarem a nossa memória coletiva do humor, percebemos como o britânico é um pouco de tudo o que imaginávamos, ao mesmo tempo, mas talvez ainda mais exacerbado, na versão em tempo real.
“Mortality” é um espetáculo novo, durante a hora e pouco de “set” foi possível perceber que talvez ainda não esteja 100% rodado, algumas partes possivelmente ainda a ser testadas, aparentes ligeiríssimas hesitações. Mas de resto é tudo o esperado, goste-se mais ou menos, de parte ou de tudo, porque tudo vale na liberdade de expressão, como o próprio fez questão de referir. Os primeiros minutos do espetáculo foram aliás, como já é hábito, dedicados precisamente ao tema da cultura de cancelamento, da importância da liberdade de expressão, das críticas que muitos lhe fazem (inclusive outros comediantes, como quis reforçar), sobretudo aos últimos espetáculos e maioritariamente nas redes sociais.
É um ciclo: a dado ponto, Gervais lançou um seu especial, logo a referir como o anterior fora alvo de críticas fulminantes e, talvez por isso, um sucesso mundial; agora, continua a fazê-lo (e voltou em Portugal), quase como que a tentar assumidamente abençoar o novo com mesmo feito – “Mortality” irá novamente parar ao streaming, talvez no final do ano depois de a tour terminar em novembro.
O tempo a voar a rir
Em Lisboa, por onde o humorista britânico andou a passear desde quarta-feira, partilhando elogios e piadas nas suas redes, foi notório que a grande maioria do público o conhecia bem, apreciava o seu humor, sempre rápido a rir e reagir.
Fugindo de exemplos concretos para não estragar a experiência de quem ainda verá a versão filmada, em “Mortality” a linha-base é simples: qualquer coisa como “todos vamos morrer, mais vale rirmos disso” tendo o comediante reiterado na Meo Arena como este é o seu stand up mais “pessoal e confessional" – no final há até uma “espreitadela” aos bastidores das suas icónicas apresentações dos “Globos de Ouro”.
No entanto, quem pensava que que “mortalidade” e “confessional” queriam dizer que este era um “set” mais filosófico sobre a mortalidade e a vida, rápido se desenganou. Isso está lá, mas vem embrulhado em histórias sobre como o envelhecimento que acomete o próprio Gervais diminui a sua fragilidade se for preso, face ao risco de ser sexualmente atacado; ou tiradas sobre a pena de morte, como reagir a assaltantes, o que vem depois da vida e que emprego preferiríamos ter no inferno.
Em Gervais, muita da questão é essa: cada tema tem várias camadas, nem todas iguais em profundidade e significado, nem todas igualmente imediatas, mas está lá o homem que se formou em filosofia, o filantropo e defensor de animais, a óbvia cultura geral, o pensamento crítico, o interesse pela experiência humana, pela história, sociedade. Só que o humorista pega nisso tudo, isola os maiores medos, tabus e o que está pior no mundo e espicaça-o, de forma aparentemente fria mas para que o ridículo venha e o medo diminua, assim o tem explicado sucessivamente.
Em palco, de forma mais ou menos declarada, vai mostrando que a graça estará no publico achar ou sentir, por momentos ou por instinto quando a piada é entregue e há um impacto de choque, um “oh pá, não”, que ele é racista, transfóbico, sexista, cruel; e depois, ainda funciona na maneira como ele brinca com o facto de o público achar isso dele.
No final do espetáculo e do dia, a maioria das piadas é tão “nonsense”, exagerada e tola, e entregue de forma tão “nonsense”, exagerada e tola – e ainda assim clara e meticulosamente pensadas - que é difícil ver qualquer maldade. Cada uma vem com uma mini história, e a graça é tanta a contá-la, somos de tal forma transportados pelas expressões, gestos e atos teatrais para o momento e a narrativa, que o riso já vem detrás, já está formado, mesmo antes do fim – e solta-se, até mesmo quando o fim não é exatamente o esperado.
Há anos, Ricky Gervais dizia como um comediante era suposto “dizer a coisa errada”. Em Lisboa, já no final, num momento mais sério, perto da despedida e motivando uma ovação, celebrou: “os últimos os dez anos foram muito estranhos; houve uma coisa chamada cultura de cancelamento. Mas empurrámo-la para trás e vencemos”