Fulgurante segundo romance de Nick Cave é reeditado em Portugal 16 anos depois.
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Haverá decerto um momento em que o leitor de "A morte de Bunny Munro" se interrogará sobre se o Nick Cave de hoje seria capaz de escrever passagens tão profundamente divertidas e delirantes como as que povoam o seu segundo romance, publicado em 2009 e agora reeditado em Portugal, próximo da estreia da adaptação televisiva (para já, apenas em Inglaterra).
A inesperada morte de dois dos seus filhos na última década e o negrume que essa perda incutiu na sua criação musical seguinte levar-nos-iam a pensar que dificilmente reencontraríamos a mesma vertigem e fúria lasciva que, aos 51 anos, exibiu no sucessor de "E o burro viu o anjo", essa feroz diatribe bíblica que não dá descanso ao leitor da primeira à última página.
Mas, se há um traço distintivo em Nicholas Edward Cave, esse foi sempre o da sua inextricável dualidade, o mérito de ser sempre muitas coisas ao mesmo tempo (de preferência opostas entre si), que fariam com que uma nova incursão ficcional recusasse a placidez e a autocomiseração que muitos esperariam que adotasse agora que é um cidadão sénior de pleno direito (vai cumprir 68 anos no próximo dia 22).
Em "A morte de Bunny Munro", o músico australiano ousou fazer tábua rasa dos elogios que lhe foram dirigidos pelo primeiro romance e fez da história uma antítese da atmosfera do anterior, mesmo que as suas obsessões - a culpa e a redenção, antes de mais - estejam lá todas.
Toda a narrativa é construída em redor de Bunny Munro, vendedor ambulante de produtos de cosmética que faz do sexo o principal (e único) modo de vida. Qual Casanova de Brighton (Cave situa o romance na mesma cidade que escolheu para viver no início dos anos 2000), coleciona relações amorosas furtivas e nem sequer o suicídio da esposa, precipitado pela sua constante infidelidade, o leva a abrandar o ritmo da sanha carnal.
Quando, logo após a trágica notícia, Bunny parte com o filho de oito anos numa viagem supostamente profissional, mas que pretende ser apenas um prolongamento das suas supostas façanhas sexuais, está ainda longe de imaginar que esse será o início de uma longa jornada rumo ao abismo, no fim da qual não será o mesmo.