
Florence Welch
Rita Chantre / Global Imagens
Florence + the Machine abraçaram literal e figurativamente o público na segunda noite do festival Meo Kalorama, Ethel Cain teve uma estreia perfeita, Belle & Sebastian trouxeram histórias e memórias.
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Nos vários concertos dados pelos Florence + the Machine em Portugal, não há um que tenha deixado vislumbre de má memória; mas o desta sexta-feira, na segunda noite do Meo Kalorama em Lisboa, foi especial. Foi, porque Florence Welch está a passar por algo, porque precisava de apoio e de força para continuar, e porque encontrou-a no público português que, como que adivinhando (ou talvez sabendo) fez lembrar os melhores tempos das audiências nacionais, em que e entrega é total, o enlevo mútuo, o que se passa naqueles minutos é uma dança difícil de explicar.
Foi aliás um dia de danças desse género, de empatias e momentos bonitos, mas comecemos por Florence. Se dúvidas houvesse sobre o nome mais consensual do segundo dia de Kalorama – quiçá de todo o festival –, os primeiros minutos do concerto da inglesa dissiparam-nas logo. No parque da Bela Vista, o anfiteatro como que subitamente ficou apinhado e com uma pontualidade britânica entra a cantora, de forma teatral, com “Heaven is Here” e “King”. De vestido negro e comprido de folhos, mão no peito ante a imensidão de gente, descalça como é seu apanágio, uma decoração de palco vintage, gótica, vitoriana, estava criado todo um ambiente para uma noite que, já se percebia, iria ser diferente.
É hipnotizante a presença de Welch em palco, um palco que ela enche por maior que este seja. Alta mas frágil, cabelo ruivo ao vento, gestos teatrais e a absoluta entrega e adoração pelo momento e pelo público, em “Ship to Wreck” mostrou-se aparentemente recuperada do problema de saúde que a fez cancelar dois concertos na passada semana – Florence disse que viria a Portugal mas não prometeria saltar e a verdade é que desde aí e até ao fim praticamente nunca parou de saltar e dançar, corpo e gestos de bailarina.
Certo é que a “operação que lhe salvou a vida”, como referia no comunicado recente aos fãs, terá a ver com algo que claramente a abalou, e toda a tónica da hora e meia de concerto foi um pouco essa, a dor e o amor, a música e a união a salvar, sobretudo quando mais é preciso. Entre “Free”, “Hunger” (tema de “High as Hope” sobre, revelou no ano passado, o distúrbio alimentar que enfrentou em jovem) e “Dream Girl Evil”, a cantora foi-se empoleirando na fila da frente, abraçando literal e figurativamente o público e sendo abraçada literal e figurativamente de volta. E depois explicou: “é tão bom estar aqui, estava-me a sentir frágil e assim que cheguei pensei: estou a ser segurada, estou segura, estou abraçada, e estou tão grata a todos vocês por isso”.
De seguida disse mesmo que gostaria que alguém lhe pegasse na mão durante todo o concerto “e felizmente tenho uma bonita amiga que também toca no festival e que vem cantar comigo”. Entra Ethel Cain, com quem tinha estado em palco horas antes, no seu concerto de estreia no palco secundário, e com quem canta agora “Morning Elvis”: novamente, como à tarde, de mãos dadas ou frente a frente, olhos nos olhos, a irmandade de duas cantoras de origens tão dispares mas que parecem a tantos níveis e na essência tão próximas ou iguais.
“Cantam esta comigo?” desafiou de seguida, para novo momento apoteótico na sua icónica cover “You Got the Love”, sempre apontar ao público enquanto dizia “you’ve got the love I need to see me through”.
Depois de “Choreomania” e “Kiss With a Fist”, “Dog Days Are Over” incluiu o já habitual ritual, agora ainda mais apropriado: “para que nos sintamos unidos e conectados – é muito difícil, é um teste, mas vocês conseguem porque são maravilhosos – eu preciso que guardem os telefones”, disse. E pediu a todos para cumprimentarem as pessoas do lado, se olharem, viverem o momento, dizerem que sentiram saudades quando o mundo esteve fechado, que gostam uns dos outros – e como se de um pregador se tratasse, o público obedeceu sem hesitar e houve abraços e choros, numa catarse que terminou com saltos para espiar problemas e dores de tal forma bem cumpridos que criaram uma forte tempestade de pó.
Escrita “quando não havia festivais, concertos, clubes e dança e por isso vamos dançar”, “My Love”, do mais recente “Dance Fever” pôs novamente toda a gente aos pulos – criando nova tempestade de pó – e logo se aproximou o encore, com a cantora a explicar como “estava tão nervosa sobre este espetáculo e vocês tornaram-no tão maravilhoso”, frisando que o público é que faz o espetáculo “e eu não poderia ter hoje desejado um público melhor, mais caloroso ou mais gentil”.
Como agradecimento, mostra ainda “Never Let Me Go”, tema de “Cerimonials” que esteve anos sem cantar ao vivo, para “Shake It Out” e “Rabbit Heart” fecharem um concerto catártico e perfeito.
Ethel e Florence
Horas antes, no palco secundário, num outro espetáculo perfeito, Ethel Cain estreava-se em Portugal. A apresentar o seu disco conceptual “Preacher's Daughter” – ou seja ela própria, nascida Hayden Silas Anhedönia no seio de uma conservadora e religiosa família e mais tarde assumida como mulher transgénero- Cain foi surpreendida por um séquito de fãs que pareciam esperar há muito por a ver, que gritavam e cantavam todas as letras como se fossem suas, ou poemas, até porque muitas o são.
Em “Thoroughfare”, Florence Welch juntou-se à norte-americana em palco, num belíssimo dueto que foi um dos pontos altos do festival, aliás tal como todo o concerto a transpirar folk, country, verdade, beleza, melancolia e dor. Uma presença frágil mas fascinante, uma artista a todos os níveis especial, para muitos a voz de uma geração, e quem não conhecia Ethel Cain certamente já não a esquecerá.
No palco principal, o fim de tarde foi dos Belle and Sebastian, que começaram mesmo pelo início, com “The State that I’m In”, de 1996. Contadores de histórias, reis do indie pop ligeiro dos anos 90, das melodias simples e alegres com letras incisivas e irónicas, os escoceses tiveram um concerto um pouco mais difícil do que o habitual - sendo o habitual para eles em Portugal uma Aula Magna ou Paredes de Coura.
Houve problemas técnicos, algum público disperso, mas os Belle mas não desistiram de piscar o olho aos fãs antigos obviamente presentes e puxar pelos que poderiam não os conhecer. “Nós somos muito velhos e vocês são muito novos e esta canção é mais nova do que vocês mas é fácil de acompanhar”, dizia Stuart Murdoch sobre “She’se Losing it”.
Sempre conversador, charmoso e divertido, Murdoch foi apresentando e explicando praticamente cada música –“esta é uma sobre estar apaixonado pela primeira vez” dizia acerca de “Another Sunny Day”, umas das melhores happy songs já feitas; e outra sobre como conheceu a mulher há muito tempo num outro festival de música, Benicassim, sendo “Piazza, New York Catcher”, da banda sonora de “Juno”.
Depois dos percalços com o piano, “Boy with the Arab Strap” – um tema sobre se é possível haver demasiado amor – lá se cumpriu o ritual de encher o palco de gente e aí sim, muitos fãs, uma fã brasileira a agarrar o microfone sucessivamente para explicar como tinha vindo do Brasil e o momento era um sonho, uma cover improvisada e por ela inadvertidamente criada dos Rolling Stones, e criou-se uma despedida em festa.
No mesmo palco e já depois de Florence + the Machine, Richard David James, ou Aphex Twin, teve a difícil tarefa de pegar onde o tal momento especial deixou o público. Um cubo gigante em palco, uma distorção robótica bem audível anunciaram a sua chegada e Richard surge sozinho em palco, criando uma mancha sonora forte, constante, experimental e eletrizante, como é seu hábito. Muito techno, muita distorção sonora e visual, várias figuras públicas misturadas nos elementos visuais mas a verdade é que o cansaço imperava, e entre a iluminação, o cenário e os impactantes efeitos visuais mal se via o DJ e produtor. Nada disto impedindo uma massa de público em frente ao palco de dançar e aplaudir mas ainda assim, das restantes zonas do espaço muitos foram dispersando e abandonando o recinto, assim que a curiosidade inicial se saciou.
O 2º Meo Kalorama termina este sábado com atuações de Siouxsie (18.05 horas), Foals (20.05 horas) Arcade Fire (22.30 horas), contando também com artistas como The Hives e Pablo Vittar no segundo palco.
A 3ª edição do festival já foi confirmada e vai acontecer nos dias 29, 30 e 31 de agosto de 2024. O anúncio foi feito pela organização e os primeiros bilhetes (earlybirds ou entradas com desconto) vão estar disponíveis no recinto, na banca do merchandising oficial.
