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Saramago sentir-se-ia supra-humano, quase como Avalokiteshvara, tanto por ser "aquele que enxerga os clamores do mundo", e que, no seu caso, os escreve depois, como por sentir que tinha mil braços e mil mãos e tinha que os coordenar. "Parece que tenho mãos a mais", diz o perplexo escritor a olhar cheio de deleite para as palmas das suas mãos, que abre e fecha repetidamente, como se precisasse de comprovar que são as suas e são apenas só duas. "Parece que tenho demasiadas mãos, mãos a mais, não sei onde as hei de meter", repete, a abanar os braços sem conseguir parar de os mexer e de sorrir.
É o final da manhã do dia 10 de dezembro de 1998, José Saramago tem 76 anos e está a descer do palco para a plateia vazia de alcatifa vermelha fofa do Concert Hall de Estocolmo, na Suécia. Acabou de ensaiar os exatos passos e gestos coreografados que terá de executar dali a umas horas na cerimónia oficial em que vai receber o diploma e a medalha do seu Prémio Nobel da Literatura das mãos do rei sueco Carl Gustaf.
"A mão esquerda recolhe o prémio, a mão direita cumprimenta o rei", recita o português a juntar-se a Robert Betts Laughlin, professor norte-americano de 48 anos que ganhou o Nobel da Física, e a Robert Francis Furchgott, o bioquímico de 82 anos, também norte-americano, que venceu o Nobel da Medicina e que tem uns óculos iguais aos seus. E Saramago e os outros dois ficam ali uns segundos a confabular, irrequietos como crianças, enquanto replicam e riem alternadamente com os gestos imitados à vez pelos três.
Já é de tarde, escureceu, a noite sueca ali cai logo depois do almoçou, lá fora neva, estão menos cinco graus e o Concert Hall apinha-se de perfume e de pessoas vestidas muito formalmente que entram afofadas na sala iluminada por 11 mil flores, cravos, gladíolos, lírios e outros ornatos brancos do campo, enquanto ecoa uma marcha maior de Mozart.
Mesmerizado, muito justo e muito alto no seu fraque, José Saramago ouve chamar o seu nome, eleva-se da cadeira disposta em semicírculo no centro do palco onde se sentam os outros oito laureados e dirige-se respeitosamente ao rei. Carl Gustaf sorri, o sorriso aumenta conforme o escritor se aproxima, com a esquerda entrega-lhe o laurel, com a direita já o está a cumprimentar, e Saramago, as duas mãos a apertar o prémio contra o coração, faz as três vénias de respeito, primeiro ao rei, depois à rainha, depois ao respeitável público. Endireita-se muito lentamente, olha infinitamente em frente, as trombetas tocam, a sala desabrocha em palmas e Saramago fica memorialmente ali, banhado de luz quente, a ressoar, enquanto pelas janelas as penas brancas de Estocolmo continuam niveamente a cair.