Coreógrafo e bailarino croata conversou com o JN sobre "Sad sam Matthäus", espetáculo inspirado em "A paixão segundo São Mateus", de Bach, que tem estreia nacional esta quarta-feira no Teatro Campo Alegre, no Porto, no âmbito do DDD - Festival Dias da Dança.
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"Nunca sais curado de um grande sofrimento, mas podes sair mudado." É esse o convite deixado por Matija Ferlin (n. 1982), coreógrafo croata que apresenta esta quarta-feira, em estreia nacional, "Sad sam Matthäus" ("Agora, sou Mateus"), espetáculo erigido sob a tutela de "A paixão segundo São Mateus", de Bach, que desafia o público a três horas de "introspeção" - para que revolva na sua própria história e encontre "novos ângulos e possibilidades".
É isso que faz Matija, que convoca para a peça as suas narrativas pessoais e familiares. Mas o impulso foi dado pelo compositor alemão, explica o coreógrafo ao JN: "O dramaturgo com quem trabalho há muitos anos, o Goran Ferčec [autor do texto do espetáculo], tem um grande conhecimento de música clássica e propôs-me, até pela similitude entre os nomes - Matthäus e Matija -, trabalhar sobre este oratório de Bach. Pensei logo em incluir material auto-ficcional, ou seja, desdobrar o tema do sofrimento e morte de Cristo para a minha própria vida e para as memórias da minha família".
Construído por camadas, como habitualmente sucede noutras obras de Ferlin, "Agora, sou Mateus" organiza-se em duas partes - "uma claramente mais teatral, a segunda com o predomínio da dança" - onde se desvelam diversas dimensões do sofrimento: "Há a paixão de Cristo - sou um homem de fé, mas essa não deverá ser a chave para olhar o espetáculo. Há o sofrimento do próprio Bach, que ficou cego no final da vida. As histórias dos meus antepassados durante a Segunda Guerra Mundial. E as minhas próprias questões no presente, sobretudo este tema das limitações que o corpo experimenta a partir dos 40 anos e o que significa isso para um bailarino".
Há também a ideia de fim de ciclo, ou de "fecho de cortina", no contexto da sua própria obra: "O espetáculo é uma espécie de museu de narrativas, faz várias citações de peças recentes ["That emerging place" e "A piece for the occasion" são as imediatamente anteriores]. É quase a súmula de uma determinada fase da minha carreira, um revisitar do meu passado pessoal e artístico. Como se descesse uma cortina. Agora estou aberto a novas paisagens".
Convite à meditação, o espetáculo, que terá uma segunda récita na quinta-feira, vive também de uma intensa fisicalidade, sobretudo na segunda parte. O desafio pessoal é imenso, diz Matija, que o compara à pilotagem de um Boeing 747: "Procurei empurrar as fronteiras da relação entre dança e teatro - há muito texto dito em cena, mas também muita dança, muitas pequenas histórias que se sucedem. É preciso um enorme grau de concentração para operar nos diversos registos", explica o coreógrafo, que apresentou já o espetáculo na Croácia, Eslovénia, França e Áustria. "Mais do que uma catarse, a peça procura estados de compaixão e de aceitação. E não propõe nenhum contexto específico, como a pandemia ou a guerra. Aponta às situações e sentimentos universais", resume o coreógrafo.