O que têm em comum os nomes de José António Saraiva, Cavaco Silva e Henrique Raposo? Todos escreveram livros que, à boleia da polémica causada nos últimos meses, venderam muitos milhares de exemplares, Todavia, não existe uma relação causa-efeito neste fenómeno, advertem vários especialistas ouvidos pelo JN.
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Nas primeiras três semanas, "Quinta-feira e outros dias", livro de Cavaco Silva marcado pelas fortes críticas a José Sócrates, vendeu sete mil exemplares. Mais do triplo do que os seus livros anteriores. Da mesma forma, "Alentejo prometido" - ensaio de Henrique Raposo que causou acesa controvérsia no Facebook - chegou aos nove mil exemplares vendidos. Um "best seller" se o compararmos com outros títulos da Fundação Manuel dos Santos, a que pertence este livro, que chegam a vender apenas 1500 exemplares.
Os dois livros atrás citados mostram bem como uma boa polémica, devidamente amplificada pela comunicação social, pode ser decisiva na carreira comercial, apesar de a realidade provar que as vendas caem a pique mal a polémica se dilui.
Não se pense, todavia, que a polémica tem um toque de Midas, capaz de transformar em êxito tudo quanto é alvo de discussão. Há dois meses, o romance "O nosso reino", de Valter Hugo Mãe, foi alvo de um ataque por parte de alguns encarregados de educação, alegadamente escandalizados com passagens sexualmente explícitas do livro. Mesmo com a forte atenção mediática que se seguiu, o impacto nas vendas traduziu-se apenas em mais algumas dezenas de exemplares vendidos, segundo os dados da auditora GfK.
"Fenómeno voyeurista"
Se há livro que, nos últimos meses, desencadeou acesa celeuma foi "Eu e os políticos", em que José António Saraiva (JAS) faz uma série de inconfidências acerca de figuras bem conhecidas da vida pública portuguesa. A tal ponto que, por decisão judicial, foi retirado do mercado, após uma queixa feita pela jornalista Fernanda Câncio.
Sem rodeios, o antigo diretor dos semanários "Expresso" e "Sol" admitiu ao JN que a polémica "potenciou imenso as vendas", cifradas até ao momento em 20 mil exemplares vendidos (dados da Gfk).
Saraiva acredita que o livro que lançou no ano passado "já é um marco no género", porque, garante, "depois dele, os livros de memórias políticas vão ser diferentes".
"Iniciei um ciclo de revelações políticas, continuado agora por Cavaco Silva e Jorge Sampaio... Eles também revelaram conversas privadas. Sem isso, é impossível escrever um livro de memórias", sublinha, lamentando o "equívoco" da decisão judicial "gravíssima" que considerou que JAS violou a privacidade de uma jornalista.
O êxito do livro residiu também naquilo que o seu autor considera como "fenómeno voyeurista", o que não o surpreende, porque "todos os povos do mundo gostam de espreitar pelo buraco da fechadura".
Ainda assim, garante que só quis falar de pessoas com responsabilidades políticas, fugindo aos "famosos por serem famosos". "O que procurei fazer foi um livro que conjugasse a importância para a história do pais com o interesse dos leitores", defende.
"Táticas de choque"
João Magueijo, o conhecido cientista português que vive há longos anos em Inglaterra, sabe bem o que é a polémica.
Quer no âmbito da Física (como em "Mais rápido que a luz") ou até no plano sociológico ("Bifes mal passados"), os seus livros suscitam discussões acaloradas. Um cenário que o autor diz não procurar a todo o custo, embora reconheça que a controvérsia "pode ser um sub-produto necessário do que quero dizer". "Em determinada situação, as táticas de choque são a melhor forma de comunicação", concretiza.
Algumas das querelas em que se vê envolvido atribui-as, todavia, à comunicação social. O exemplo mais flagrante aconteceu com "Bifes mal passados", quando algumas frases retiradas do contexto fizeram passar a ideia de que o livro era um ajuste de contas com a sociedade inglesa.
Crítico, acusa a imprensa britânica, "e não só os tabloides", de terem distorcido o conteúdo: "Para quê ler o livro, se já sabemos aquilo que queremos escrever sobre ele, não é? Portanto, nesses casos, reenvio para os jornalistas a questão de se usar a controvérsia como forma de vender ou ter alguma coisa para dizer".
O próximo livro de João Magueijo também deverá dar que falar, ainda que por motivos distintos. O físico está a concluir um projeto sobre a diáspora portuguesa de Toronto, com a particularidade de estar escrito em "emigrês", ou seja, no idioma particular dos descendentes lusitanos, que misturam português, inglês e francês com grande desenvoltura.
Já quase a terminar o livro, o professor universitário ainda se questiona sobre se a obra será legível ou deverá antes diluir a linguagem. "Se aquela língua franca em que escrevi o livro se tornasse um culto eu ficava feliz da vida, e não me venham chamar populista por isso. Era sinal que tinha conseguido comunicar algo sobre como falam e vivem 5 milhões de portugueses que os outros 10 milhões preferem ignorar", observa.
Sócrates e Cavaco, "dois homens sofríveis"
Se a controvérsia hoje tem (quase) sempre um cunho comercial associado, tempos houve em que eram as desavenças ideológicas, estéticas e literárias, como as que opuseram surrealistas e neo-realistas, a estar na base da rutura. Dissensões que Miguel Real, escritor e crítico literário, aplaude por "fazerem parte do tecido da literatura portuguesa". "E ainda bem, porque uma literatura 'aprumadinha' é uma literatura burocrata, que não atrai o leitor", sustenta.
Por isso, assume-se como crítico contundente dos polemistas de hoje, suscetíveis de atraírem apenas leitores ocasionais. "Polémicas entre Sócrates e Cavaco são a espuma do dia entre dois homens sofríveis que usaram o poder político para se nobilitarem, legando às novas gerações um país desequilibrado. José António Saraiva é menos que sofrível.
A História atirará todas estas personalidades nem sequer para uma nota de roda pé, ficarão fora da página", diz, lamentando á "ausência de polémicas sobre o estilo, a natureza da literatura, o seu papel social ou o estatuto do escritor na sociedade, que tinham sido os grandes temas das antigas polémicas".
Todas essas questões foram substituídas por aquilo que designa por "idiossincrasia do autor", os seus gostos e convicções, "isto é, causas e feitos que não ficarão na História".
Se a literatura e os leitores perdem com esta tendência, Miguel Real acredita que as editoras anseiam por este tipo de títulos, para que possam, assim, "compensar as escassas vendas de outros livros, melhores, mais intelectualizados, mais sérios".
Escritores sofrem com "ataques injustos"
Editor da Contraponto, Rui Couceiro recusa a ideia de que (também) nos livros não existe boa nem má publicidade: existe apenas publicidade. "Pode até ser válido para o produto em si, mas a minha preocupação nunca é apenas o livro. São também os autores", adianta o responsável, que salienta não acreditar "em bons resultados comerciais a qualquer custo".
Lamentando que as as polémicas em Portugal tenham "sempre como base a maledicência e sejam normalmente desprovidas de conteúdo", o responsável adianta que, contrariamente à ideia instalada, os escritores não são os mais beneficiados com a notoriedade súbita. "Eles sofrem com ataques injustos", ou seja, "os que têm por base a inveja e a mesquinhez".
A lógica de sensacionalismo que parece rodear boa parte das polémicas atuais não encontra seguidores em todas as editoras. É o que, afiança Rui Couceiro, acontece com a chancela integrada no Grupo Porto Editora: "Move-nos a vontade de fazer livros bons e que interessem a públicos vastos. É difícil? É. Mas acreditamos que é possível? Sem dúvida. Não nos interessa o êxito através da mediocridade, mas sim por via da criatividade e do trabalho".