A necessidade de preservar certas relíquias dá origem à procissão.
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Se, como referiu Mumford, "as ruas e logradouros das cidades medievais eram, acima de tudo, um grande palco para as cerimónias da Igreja", as procissões deviam ocupar, sem dúvida, o lugar das peças mais representadas.
O Porto daquele tempo não fugia à regra. Procissões nas ruas, era o que não faltava, no Porto antigo. Faziam-se para comemorar o aniversário de um monarca ou o nascimento de um príncipe; ou para lembrar uma vitória em determinada batalha; e havia as procissões de preces, como aquela em que foi a imagem do Senhor de Além, até à barra, a pedir o fim de uma terrível cheia no rio Douro; de penitência, como as que eram organizadas pela Confraria do Senhor dos Passos em que alguns penitentes figuravam transportando ossos humanos na boca.
Uma das mais antigas procissões que se faziam no velho burgo era a das Cruzes, a S. Lázaro, que teve como seu grande impulsionador Gaspar Moreira, provedor do Hospital de S. Lázaro, que contou com a colaboração da Câmara Municipal.
A mais antiga referência à realização desta procissão data de 9 de Fevereiro de 1662.
Segundo consta de um documento, o referido Gaspar Moreira, naquela data, oficiou à Câmara informando que na igreja do hospital de que ele era provedor existiam umas "santas relíquias", entre as quais "um meio corpo em prata de S. Lázaro" e outras relíquias como " um espinho da Coroa de Nosso Senhor", que se guardavam , "sem a dignidade que lhes era devida" dentro de uma caixa que estava na sacristia da igreja.
Entendia Gaspar Moreira que as referidas relíquias deviam estar mais bem guardadas, sobretudo em local com um mínimo de dignidade e onde pudessem estar permanentemente expostas ao culto público. Na exposição que fez à vereação municipal, o provedor do Hospital de S. Lázaro informava que nem a igreja, nem o estabelecimento que administrava possuíam um lugar digno para recolha dessas relíquias nem usufruía de verbas suficientes que lhes permitissem tê-las permanentemente expostas ao público e devidamente iluminadas. E sugeria, então, que essas relíquias fossem guardadas no sacrário da capela mor da Sé, de onde só sairiam, no Dia da Santa Cruz, para voltarem ao seu ponto de origem, regressando à Catedral na quinta-feira a seguir ao domingo em que se festejava o santo padroeiro do hospital.
E assim nasceu a tradição da Procissão das Cruzes, a S. Lázaro
No referido documento Gaspar Moreira lembrava que logo que fosse possível mandar fazer na igreja do Hospital de S. Lázaro um altar ou sacrário digno de recolher as relíquias em causa, "com lâmpada continuamente acesa", elas regressariam definitivamente ao lugar a que pertenciam e onde sempre haviam estado.
A permanência das relíquias na Sé era considerada como um "mero depósito" e nunca uma doação.
A existência do Hospital de S. Lázaro nas imediações do jardim que mantém aquela designação remonta a épocas muito remotas.
A referência mais antiga ao funcionamento daquele estabelecimento destinado ao tratamento da lepra, e daí também aparecer mencionado como gafaria ou hospital dos gafos, é de 1484 e consta de uma carta do rei D. Manuel I que confirma um privilégio que o pai daquele monarca, o rei D. João II fizera a dois homens e duas mulheres de "puderem viver continuamente na Casa e Hospital de S. Lázaro desta cidade…"
Os acontecimentos a que acima nos temos vindo a referir reportam-se ao tempo em que a Câmara do Porto era a entidade responsável pela administração e manutenção dos hospitais e da maior parte dos hospícios e capelas da cidade. Entre os primeiros contava-se, naturalmente o Hospital Gafaria de S. Lázaro que em Outubro de 1721 passou a ser administrado pela Santa Casa da Misericórdia do Porto que, anos mais tarde, mudou as suas instalações para a Rua das Fontainhas. A igreja do hospital viria a ser substituída pela capela de Santo André e Santo Estêvão, mandada fazer com as esmolas da cidade, que até meados do século XIX esteve no então chamado Largo de Santo André, onde antigamente se fazia a feira da erva, e que é aquele espaço, muito alterado, naturalmente, que hoje se chama Praça dos Poveiros.
Diz uma antiga tradição que era a esta capela que os doente do Hospital de S. Lázaro iam ouvir missa aos domingos e dias santificados. E quando morriam era no adro deste templo que os seus corpos encontravam a sepultura. Quando em 1858 se projectou a continuação da Rua da Alegria até ao antigo Largo de Santo André, a continuação da capela no local onde estava foi posta em causa e não tardou que fosse demolida.