O teatro municipal do Porto Rivoli recebe esta sexta-feira, às 21.30 horas, a peça "4" do encenador hispano-argentino Rodrigo Garcia.
Corpo do artigo
Diretor do Centre Dramatique Nationale, em Montepelier desde janeiro de 2014, construiu a sua carreira teatral em Espanha, para onde emigrou nos anos 80 vindo de Buenos Aires e fundou La Carnicería Teatro, em Madrid. Colaborou com o Centro Dramático Nacional (Espanha), o Festival de Avignon e a Bienal de Veneza. Em 2009 foi premiado com o Prémio Europa Théatre Nouvelle Realité. As suas produções teatrais são sempre engajadas politicamente e denuncia, veemente, situações sociais. No campo da estética teatral não se coíbe de mesclar performance, dança música e vídeo e são visíveis as influências do teatro do absurdo, especialmente de Samuel Beckett ou Antonin Artaud. Algumas das suas criações em França e em Espanha, valeram-lhe manifestações dos defensores dos direitos dos animais ou da Igreja, acusado de agressor e de Cristianofobia. A sobriedade com que fala parece em muito afastada das acusações empoladas que lhe são feitas.
O que retrata a sua nova produção "4"?
É difícil dizer o que retrata "4" porque não tem uma história concreta, é uma ficção onírica. O número repete-se várias vezes são quatro atores, temos quatro galos, utilizamos a quarta sinfonia de Beethoven, por isso quis que se chamasse "4". São coisas um pouco biográficas comentários com a vida que levamos, é como fazer uma viagem, uma pequena alucinação. Não há uma história para seguir. Tu como público vais e decifras as coisas, o que tem para ti de sugestivo.
De onde parte o seu processo criativo?
No meu processo de criação não trabalho com nada escrito, o meu ponto de partida são as pessoas com quem quero trabalhar. De manhã em casa muito tranquilo começo a ter as minhas ideias e penso em estímulos para começarmos a trabalhar, normalmente são ações físicas. Ao meu lado tenho sempre a minha equipa de vídeo que começa a investigar. E também a equipa de cenografia, por exemplo para "4" trazemos um sabão de Marselha que pesa uma tonelada e é a sério. Em paralelo, começo a escrever em casa. Acumulo muito material com muitos textos e imagens, durante aproximadamente um mês e meio. E começo a pensar como fazer uma posta em cena, normalmente funciona como uma colagem. No fim, ponho ordem no caos e dou uma estrutura a tudo, faço um storyboard, como no cinema, de cada cena. É uma estrutura rígida onde se organiza todo o caos.
Como é que adquiriu o título de provocador, capaz de irritar tanta gente?
Depende do que se entende por provocador, a sociedade que acha o meu teatro provocador está doente. Eu não provoco ninguém a realidade é a que te pode provocar. Porque não se sentem provocados com os atentados em Paris, ou com os ataques franceses na Síria ou com a economia portuguesa? O que eu faço é falar das coisas sem falsos moralismos, a sociedade não quer ver as coisas como elas são, as coisas que existem. O teatro não serve para mudar o impacto social, mas como experiência estética da arte. Pode apenas servir como reflexão a um grupo de pessoas mais curiosas e mais recetivas, mas mudar as coisas, não.
Quando está em processo criativo pensa no público?
Quando estou a criar penso sempre no público. Diverte-me pensar qual será a sua resposta a determinada cena. Quase como um jogo, mas nunca algo para agradar o público. Essa incógnita é muito bonita. O público reserva muitas surpresas, às vezes funcionam como público outras como indivíduos, nos momentos cómicos ácidos é onde se vê essa diferença. Também há quem não goste se levante a meio da peça e se vá embora. Bom porque não faço umas obras pensadas para agradar às pessoas, mas, um olhar sobre a realidade. Umas sentem-se agredidas, outras aborrecidas e outras estão simplesmente perdidas porque não há uma história. Eu acho que as pessoas devem ficar até ao fim, partilhem ou não do que estão a ver, assim têm material para discutir.
Quando alguém se levanta a meio de uma peça sua, sente-se mal ou há um lado de gozo nesse ato?
Sempre que alguém se levanta e vai embora eu sinto-me fracassado como artista. Só me sentiria bem se achasse que era superior. Bem... Eu também me vou embora de obras de arte, há essa liberdade.
E quando alguém elogia as suas peças no final?
Nunca espero pelo público saio do teatro pela porta de trás e vou-me embora do bairro. Não faz parte do meu processo criativo, não quero falar com as pessoas. Qualquer artista sabe que os que as pessoas te vão dizer é que adoram ou que és uma merda. Mas isso é como tudo na vida. Se tu dizes que vais de férias para o Brasil há pessoas que te vão dizer que é maravilhoso, outros dizem que é uma tontaria.
Dirigir o Centre Dramatique National é uma prisão ou sente-se confortável ao ter uma estrutura?
Eu escolhi estar no Centre Dramatique National (CDN) de Montpellier. E aí posso ser livre. Antes tinha a preocupação egocêntrica de estar sempre com as minhas obras. Agora tenho de ser generoso e valorizar os meus colegas e outros artistas. Há um compromisso social de dar o que consideras melhor. O CDN é um trabalho social, está num bairro e eu considero que a educação nos cidadãos médios é má e deficiente. O trabalho do teatro é ajudar a melhorar a educação destas pessoas.
Porque lhe chamam o enfant terrible do teatro europeu?
Eu não sei porque me chamam de enfant terrible, já tenho 51 anos. E chamarem-te enfant (criança) com esta idade...Isto é apenas uma etiqueta banal dada por um setor conservador da imprensa. Considerarem provocador ver um ator nu em palco que é o mais natural do Mundo... Levo 30 anos com essa etiqueta, mas eu já nem ligo tens de te manter afastado dos fenómenos externos.
Há dez anos que colabora com o português John Romão como assistente de direção, como é essa relação?
Conheci o John (Romão) numa Ecole de Mâitres, frequentado por alunos de distintas cidades europeias. Durante um mês viajamos por várias cidades a criar juntos e já não é a primeira vez que eu escolho alguém jovem para trabalhar comigo. John estava como ator mas ele também é encenador e acabou por ficar. Ele é uma pessoa muito criativa e trabalhar com alguém jovem, de uma outra geração interessa-me muito.
Gosta de variar as equipas com que trabalha?
Eu quando trabalho gosto de ter sempre a mesma equipa, colaboro sempre com as mesmas pessoas do vídeo. Com os atores é distinto, gosto de mudar porque a relação é diferente. Há uma tensão com um ator novo que já não se consegue com alguém com quem se trabalha há muito tempo. Por exemplo para "4" mudei o designer de luz, há 25 anos que trabalhava com o mesmo. Tinha uma intuição de que era necessário mudar e falei com o Carlos (Marquerie), ele riu-se, já lhe parecia estranho 25 anos sempre a trabalhar juntos.
Tem saudades de trabalhar com a sua companhia em Espanha?
Em Espanha, senti-me muito depreciado pelas instituições o trabalho é muito precário, ao ponto de afogar-nos e matar-nos. Tudo isto para servir os interesses de um teatro clássico e populista. Em 25 anos mudaram os partidos políticos, mas nunca mudou a torpeza do Ministério da Cultura. Eu digo isto porque a única forma de ajudar Espanha é denunciá-la.
Mas está em Portugal no âmbito da Mostra Espanha...
É confortante estar aqui com o apoio de uma instituição espanhola, ainda que quem me tenha convidado tenha sido o Tiago Guedes. Mas, o que era realmente conveniente era que me tivessem convidado há 20 anos. Porque agora não sei quem saca mais proveito de isto, se nós de Espanha ou se Espanha de nós.
É muito diferente trabalhar em França?
Eu já tinha trabalhado muitas vezes em França, mas estava em minha casa em Espanha e ia dois meses a França fazer uma produção e voltava. Agora uma coisa que me chama muito a atenção é que em França os técnicos adoram a sua profissão. Quando cheguei as pessoas tinham efetivamente lido as minhas obras e isso é algo raro de encontrar. É uma lástima que haja tantas pessoas que não gostam das profissões que desempenham.
Acha o teatro europeu muito díspar?
Há artistas como indivíduos excecionais em todo o Mundo. Mas claro que há regiões onde é mais evidente pela sua visão política e apoios à arte contemporânea. Os artistas belgas têm muito mais apoio do que os espanhóis ou os portugueses. Às vezes na necessidade é onde se criam as melhores coisas. Dostoievski e Cervantes escreveram na cadeia. Mas para escrever basta um prato de sopa e uma caneta. Para fazer teatro é preciso um pouco mais, nomeadamente uma rede para distribuir a obra.
Faltou-lhe essa rede em Espanha?
Nós em Madrid chegávamos a estar dois a três meses a ensaiar, para depois apresentar cinco dias num teatro. Não existia uma rede como em França onde há centenas de teatros a funcionar.
Apesar das contrariedades seguiu em frente...
Sim segues, mas há centenas de pessoas com valor que ficam pelo caminho porque não é o mesmo até aos 30 anos que daí para a frente. Há que ter muita confiança em si mesmo ou ser um tonto. Eu segui porque não podia ser outra coisa.
Nunca foi assaltado pela dúvida?
Há muitos momentos de dúvida. Houve uma altura em que estive dois anos sem produzir nada de novo. Estava descrente do teatro e do público e também não queria fazer produções tipo fábrica de churros. Além do mais, sentia-me descrente por não chegar a um taxista ou a um rececionista de hotel. Só chegávamos a um tipo de pessoas que gostava daquele tipo de teatro. Quando falho quero fazer as coisas com vontade e falhar porque estive mal. Não quero falhar porque estou a fazer uma peça na qual não acredito. Há uma minoria muito específica de pessoas que gostam de teatro e há que viver com isso.
Gostaria de regressar a Buenos Aires?
Acabo de regressar da Argentina, onde estive com "Golgota Picnic" e funcionou bem, estive no teatro San Martin onde ia na minha adolescência. Não penso regressar a Buenos Aires até porque toda a minha carreira teatral foi feita em Espanha e em França