"Os cosmólogos não vão para o céu" é um retrato lúcido do Portugal de hoje pela pena certeira do escritor Manuel da Silva Ramos.
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Há muitas aproximações possíveis ao novo romance de Manuel da Silva Ramos, da abordagem política à sociológica, mas nenhuma delas deve desviar-nos do essencial: trata-se de um documento precioso para um entendimento mais amplo da sombra visível que paira sobre o país.
Com uma contundência infelizmente rara na nossa literatura, o autor de "Os três seios de Novélia" expõe e denuncia em "Os cosmólogos não vão para o céu" o crescimento avassalador da extrema-direita entre nós, valendo-se da experiência dos dois fascismos que conheceu ao longo da vida (o de Salazar, na juventude, que o fez emigrar para França nos anos 70, onde iria mais tarde confrontar-se com a figura sinistra de Jean-Marie Le Pen).
No livro, Tomé Furão e o Partido Renovação Nacional são o líder e a força partidária que, à semelhança dos epítomes em que se inspiram, querem o poder a todo o custo, alimentando um discurso de ódio que, qual mancha negra descontrolada, vai contaminando tudo e todos em seu redor. Das rusgas avulsas no Martim Moniz à morte de Odair às mãos de um polícia, a realidade, na sua face mais dura, está sempre à espreita nestas páginas, nas quais a política está longe de ser o único eixo, ainda que seja o principal.
A dimensão pessoal e humana é-nos contada através da história de Pedro Ribeiro, um cosmólogo que, devastado pela morte da mulher e da filha numa passadeira, abandona a capital para instalar-se na Beira Baixa.
É aí, distante do bulício citadino, que se depara com uma nova realidade que o fará reconciliar-se com a vida, graças não só aos encantos naturais da região, mas, sobretudo devido à bem sucedida estratégia de integração promovida pelo município do Fundão, com imigrantes oriundos de dezenas de países a contribuírem ativamente para o dinamismo da comunidade.
Ficamos a conhecer a história de muitos deles, vindos da América do Sul, África ou Europa de Leste, gente que deixou para trás a guerra, a insegurança e a perseguição dos seus países de origem em nome de uma esperança vaga, muito distantes ainda de saberem que se veriam arrastados para uma contenda política insidiosa.
Habilmente, Manuel da Silva Ramos vai entrelaçando todos estes fios narrativos que no seu conjunto nos oferecem a imagem de um Portugal que, apesar de fraturado, parece necessitar sobretudo de uma consulta no divã do psicanalista.
"Os cosmólogos não vão para o céu"
Manuel da Silva Ramos
Edição: Cisma, 2025