Fantasmas de Dante e da sua amada Beatriz pairam sobre o novo livro do escritor sul-africano. J. M. Coetzee continua a produzir febrilmente, 20 anos depois do Nobel.
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É muito provável que não voltemos a encontrar nos livros de J. M. Coetzee o registo superlativo de "À espera dos bárbaros", "A vida e o tempo de Michael K" ou "Desgraça", romances que, investindo em modelos narrativos muito diferentes entre si, convergiam na enunciação de um mal-estar do indivíduo cuja origem pertence muito mais à esfera social do que a qualquer outra causa.
Mas essa evidência amarga de que o melhor, afinal, não está ainda por vir - reforçada por uma certa tepidez sensaborona dos seus últimos livros - não retira interesse algum à sua mais recente incursão ficcional, já disponível em Portugal.
Intitulado "O polaco", este breve romance, tal como já tinha acontecido num passado recente, foi publicado inicialmente em territórios que não os habituais Estados Unidos e Reino Unido, numa louvável tentativa de desafiar o modelo hegemónico anglo-saxónico global, que não é alheia ao facto de o autor sul-africano ter crescido num caldo cultural em que o inglês não detinha, de todo, o papel dominante.
Enunciados extraliterários à parte, "O polaco" é, antes de tudo, um romance de um autor maduro, sabedor, por isso mesmo, das conquistas e limitações - mais estas do que as primeiras... - trazidas pela idade.
Esse tom sereno, a roçar a resignação, é por demais evidente num livro onde cada parágrafo é numerado, como se o narrador procurasse desse modo desfiar melhor os acontecimentos, enfatizando a necessidade de pausas, dado o tom concentrado do texto.
Para a escrita do "O polaco", o autor de "Diário de um mau ano" foi buscar inspiração ao florentino Dante Alighieri e à sua adorada Beatriz, a jovem pela qual se apaixonou perdidamente e que o inspirou para "A divina comédia".
No centro da nova narrativa do Nobel da Literatura de 2003 encontramos um pianista septuagenário, especializado em Chopin, e uma catalã de classe alta, que se conhecem após um recital em Barcelona.
Mais do que os 25 anos de diferença, o que os separa é a ordem sentimental: um ano depois de se terem cruzado, Witold confessa à mulher (também chamada Beatriz) a paixão que nutre por si. Sem amor algum para lhe dar, a musa espanhola vai alimentando, todavia, essa estranha relação, através de escassas provas de afeto a que o veterano artista polaco se agarra com o desespero dos apaixonados sem remissão.