Bob Dylan faz hoje 80 anos. A veneranda idade pode levar-nos a pensar que o sempre misterioso ícone folk prepara uma saída de cena, mas, a avaliar pelos exemplos de muitos artistas que continuaram a criar até ao fim dos seus dias, a retirada está longe de ser uma inevitabilidade.
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Na semana passada, a poucos dias de atingir os 80 anos, Bob Dylan foi visto a passear pelas ruas de Los Angeles. A ocorrência não teria nada de especial se o homem em causa não fosse um ser tão esquivo como é Dylan há várias décadas. O pouco circunspecto "LA Times" não tardou a assinalar o facto, dedicando-lhe um extenso artigo em que relembrava que há uma década que tamanha raridade não era presenciada.
É pouco provável que essa estranha aparição obedeça a uma súbita mudança de hábitos e modos de vida do homem que, apesar de ter tido sempre os olhos do mundo cravados em si, nunca deixou de tentar ser invisível.
Enquanto esperamos (muito provavelmente em vão...) que Bob Dylan saia finalmente da sombra, agora que entrou no rol dos octogenários, podemos sempre revisitar o sempre magnífico "I'm not there", o filme com que Todd Haynes plasmou as máscaras de que o trovador norte-americano sempre se serviu ao longo da vida.
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Se Dylan seguir o exemplo de Lawrence Ferlinghetti (1919-2021), podemos estar descansados. Não só viverá, pelo menos, mais uma vintena de anos, como irá manter a centelha criativa até ao fim dos seus dias.
Verdadeiro artista total, experimentou tudo e o seu contrário. Como cofundador da mítica City Light Booksellers & Publishers, ajudou a divulgar os maiores nomes da geração beat. Poeta, tradutor, pintor, editor e livreiro, foi ainda um ativista social empenhado que se ergueu sempre contra todas as formas de injustiças.
Mas o exemplo maior da sua inultrapassável vitalidade talvez tenha sido mesmo a publicação, em 2019, de "O rapazinho". No ano em que celebrou o centenário, o autor de "A poesia como arte insurgente" estreou-se no romance com uma tocante obra em que faz o seu testamento literário e, ao mesmo tempo, abre portas para um futuro de que sempre fez parte.
Não encontramos muitos artistas e autores que tenham sido capazes de se reinventarem em permanência até ao fim, como Joan Miró o fez.
Aos 81 anos, já incensado por uma obra a vários títulos marcante, o genial catalão surpreendeu o mundo com um tríptico intitulado "A esperança de um homem condenado".
O que impressiona no trabalho não é apenas a busca de diferentes soluções artísticas mas sobretudo o que lhe deu origem.
Indignado com várias decisões judiciais tomadas pelo regime franquista, Miró resolveu, em 1974, levar por diante este arrojado tríptico como forma de alertar a opinião pública para a necessidade absoluta da autorização do pedido de indulto formulado pelo jovem anarquista Salvador Puig Antich.
A recusa e a consequente execução chocaram-no de tal forma que não descansou enquanto não concluiu o impressionante trabalho.
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Quantos serão capazes de esperar até aos 78 anos para, finalmente, se poderem dedicar à arte que realmente amam? Não muitos, com toda a certeza.
Uma das raríssimas exceções é Anna Mary Robertson Moses (1860-1961), celebrizada artisticamente com o nome de Grandma Moses.
Nascida num meio humilde, no bairro nova-iorquino de Greenwich, começou a trabalhar em limpezas com apenas 12 anos. As naturais exigências do trabalho, acrescidas do casamento e dos dez (!) filhos que se seguiram, foram adiando ano após ano a paixão pelas artes.
Quando as exigências começaram a baixar, pôde por fim começar a dedicar-se à pintura e às artes decorativas, ainda na década de 1930. Produziu tão afincadamente que, calcula-se, terá pintado nesse período 1500 telas. Na sua maioria quadros representativos da vida rural, eram vendidos pela própria artista por 3 a 5 dólares. Quando, na década seguinte, esses trabalhos começaram finalmente a ser reconhecidos, o seu preço multiplicou-se por mil.
Até aos 101 anos, continuou a pintar e a criar de forma incessante, desencadeando uma admiração tal que a data do seu nascimento foi proclamada, em Nova Iorque, como o Dia Grandma Moses.
É, de todo impossível, falarmos de obras tardias sem que seja referido o nome de Manoel de Oliveira (1908-2015).
É certo que o cineasta portuense começou a interessar-se pela designada sétima arte com apenas 20 anos, quando na altura era pouco mais do que uma curiosidade para a generalidade das massas, mas, por circunstâncias várias, que vão da opressão salazarista a questões familiares, a aclamação plena só surgiu por volta dos 80 anos.
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Excetuando alguns títulos avulsos, como "Aniki-Bobó" ou "Amor de perdição", a generalidade da obra oliveriana foi criada nos 25 anos seguintes. Foram vem mais de 30 títulos, entre longas-metragens e curtas ou médias, as que dirigiu nesse período, aí se incluindo títulos tão incontornáveis como ""Non, ou a vã glória de mandar", "Vale Abraão", "O convento", "Party" ou "Palavra e utopia".
A vida, afinal, pode muito bem começar aos 80 anos.