Do deserto do Saara a São Tomé e Príncipe recolhemos sons ancestrais em diálogo com o presente. Festival termina este sábado com Nneka e Os Tubarões.
Corpo do artigo
Na noite mais africana do FMM - Músicas do Mundo, festival que termina este sábado em Sines, distrito de Setúbal, ampliamos o nosso vocabulário musical, contactamos com novos instrumentos e estilos de canto, viajamos de São Tomé e Príncipe ao deserto do Saara. Pelo meio, ainda visitamos o Paquistão. A esfera armilar é imparável neste festival.
Há um eco longínquo a unir as diferentes propostas que passaram, anteontem, pelos palcos do Castelo de Sines e da Avenida Vasco da Gama. Seja na sua forma mais tradicional ou cruzada com sons de outras épocas e paragens, ouvimos o sopro de culturas que se perdem na noite do tempo. Bab L’Bluz (“portal para o blues”) é um espaço de encontro entre França e o Magrebe.
O interesse comum foi o “gnawa”, música religiosa associada a uma etnia de Marrocos que combina poesia ritual e dança, e o “guembri”, alaúde de três cordas. No núcleo da banda está a cantautora Yousra Mansour e o produtor e guitarrista Brice Bottin. Conheceram-se em Marraquexe, 2017, e a aventura levou-os a “Nayda!”, álbum que arrecadou o prémio Songlines 2021 na categoria Fusão.
Música viciante
É psicadelismo europeu tingido com o apelo ancestral do “gnawa”. Ou poderá ser exatamente o contrário. O resultado é irresistível: música viciante e compulsiva, tanto agita o corpo como convida à digressão interior.
Foi uma antecâmara preciosa para o mergulho cósmico no universo dos Tinariwen, grupo de tuaregues do Mali que participou em diversas ações de guerrilha no Norte de África e que se veio a tornar uma das grandes estrelas da World Music.
O fundador é Ibrahim Ag Alhabib, que aos 4 anos testemunhou a execução do seu pai durante uma rebelião no Mali. Tal como o dos outros músicos, o seu rosto parece esculpido por punhais. Apresentaram-se com vestes talares e envolvidos por turbantes. Alguns exteriorizam o entusiasmo, outros mantêm-se fechados nas suas carapaças. Formam uma rede densa e inebriante de guitarras elétricas que flutua do palco para a cabeça do público.
Mudamos de geografia, perdemo-nos na vastidão. Da voz de Ibrahim desprendem-se as causas do povo tuaregue envolvidas pela toada “assouf” (nostalgia, na língua tamaxeque). Mas o diálogo com o blues e o rock é indissociável do som dos Tinariwen, que no último álbum, “Amatssou”, exploram ligações com a música da América profunda.
Do sussurro ao grito
Desvio no mapa para conhecer o “qawwali”, canto devocional sufi popular na Índia e Paquistão. A voz é de Shahzad Santoo Khan (que faz lembrar Maradona).
O projeto intitula-se Alright Mela Meets Santoo e cruza o electro pop francês de Markus e Xavier Poucher com os esticões vocais do paquistanês. Vai do sussurro ao grito maníaco, é prece e invocação. Transporta-nos para lugar exótico com batidas clubbing.
De volta a África e a ilhas bem conhecidas, São Tomé e Príncipe, deparamo-nos, já ao final da noite, com os África Negra, banda histórica que se iniciou nos “fundões” (bailes ao ar livre que juntavam diferentes comunidades) entre 1972/74. Gozaram de enorme sucesso nos países lusófonos até à separação, em 1989. Mas nos últimos anos voltaram a gravar. São quentes e bamboleantes na sua mistura de “soukous” (rumba africana) e highlife.
Deram um longo concerto a que se seguiu, já de madrugada, outro número africano com os ganeses Alogte Oho & His Sounds of Joy. Um gospel temperado para adormecer.