Autoridade do Trabalho detetou 35 falsos recibos verdes na Fundação. Advogado denuncia "acordos inaceitáveis".
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Há dois meses, o presidente do Conselho de Administração da Casa da Música (CdM), José Pena do Amaral, repetiu, no Parlamento, que na Fundação "não existe uma situação de falsos recibos verdes". E garantiu ter "opiniões jurídicas" que o sustentavam. Afinal, há. São 35 detetados pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), só entre o universo de pessoas que reclamou.
A CdM está agora a propor contratos aos trabalhadores, em que, de acordo com os documentos a que o JN teve acesso, reduz a indemnização a uma ínfima percentagem do que manda a lei e obrigando-os a assinar uma declaração em que se consideram pagos "de todos os valores vencidos até à presente data, nada mais tendo a exigir".
"A CdM não está a negociar, está a prejudicar os trabalhadores em milhares de euros", assegura, ao JN, Nuno Pacheco Magalhães, advogado com 26 anos de experiência em Direito laboral, que representa 15 trabalhadores da Casa - cinco técnicos de palco e dez guias - no diferendo que opõe instituição e funcionários desde março, altura em que a Fundação dispensou os trabalhadores independentes sem qualquer remuneração. O JN confrontou a Casa da Música com estas acusações, mas não obteve resposta.
A ACT detetou 35 falsos recibos verdes. Que contraordenação significa?
Muito grave.
A ACT mandou integrar os trabalhadores. E o que fez o Ministério Público?
Em vez de chamar os trabalhadores, tentar perceber a realidade, interpôs ações a requerer a integração, mas sem referir categorias, níveis salariais, valores retroativos. A CdM agradece, porque contesta com facilidade ações deste teor e os trabalhadores continuam sem ser integrados, a sobreviver dos apoios da covid que acabam este mês.
A CdM está a propor contratos com valores que os funcionários dizem ser impraticáveis. Em alguns casos, 200 euros por mês. Confirma?
Tem que ver com o número de horas contratadas. A maioria dos guias, por exemplo, trabalhava entre quatro e seis horas por semana. Os horários eram fixados, em comum acordo, e rendiam 250€/300€ mês. Agora, a CdM propõe contratos em que, além de reconhecer menos horas do que as efetivamente trabalhadas, faz uma coisa pior: não fixa o horário e diz que alguém a quem paga 250€ por mês tem de estar disponível, todas as semanas, quatro horas, para trabalhar à hora que a Fundação entender e fixar. Isto não é uma proposta, é um faz de conta para calar o poder político e a opinião pública.
A CdM paga retroativos?
Eufemisticamente, podemos dizer que propõe pagá-los. Fazendo as contas, não.
Em abstrato, uma remuneração mensal de mil euros, em cinco anos de casa, representaria que valor?
Teria de fazer a simulação.
O que vai acontecer a quem não assinar?
Só há uma solução; interpor ações judiciais que visem o acautelamento dos direitos laborais. E esperar que o lento tempo dos tribunais resolva. E que, até lá, os trabalhadores encontrem modo de subsistência. A CdM joga com isso para pressionar acordos inaceitáveis.
Que padrão tem o acordo?
O único padrão que encontro é do esbulho ao bolso dos trabalhadores. A CdM paga pouco menos de 10% dos retroativos e, em alguns casos, atribui categorias e salários escandalosamente abaixo do que era usual pagar.
Entende que a CdM está de boa fé na negociação?
A CdM ficou escrava de uma afirmação que proferiu no Parlamento, quando disse que aceitaria a decisão da ACT. Mas quando a ACT concluiu que os recibos verdes eram quase todos verdadeiros contratos de trabalho, a Fundação, que não o esperava, quis fazer de conta que cumpria a palavra. E desatou a fazer propostas que prejudicam os trabalhadores em milhares de euros. Se há má-fé, não sei avaliar, mas não há razoabilidade.
Tem conhecimento sobre o sistema de avaliação dos trabalhadores?
Desde 2011 que a CdM não faz avaliação objetiva, com critérios conhecidos pelos trabalhadores. Até lá, fê-lo. Como os critérios eram discricionários, foram contestados. A solução, em vez de os melhorar, foi acabar com eles.
SIMULAÇÃO JN
Como a CdM converte quase 30 mil euros em 2500 euros de indemnização
Numa remuneração mensal de 1000 euros, quanto receberia de retroativos um funcionário com 5 anos de Casa?
- Um subsídio de férias, umas férias e um subsídio de Natal por cada ano. Ou seja 3x1000€x 5 anos. No total, são 15 mil euros.
- Formação profissional: 35h x3 anos* x 5,76€/h = 605,76€
- Subsídio alimentação: 6,32€ x 22 dias x 11 meses x 5 anos = 7647,20€
- Segurança Social: Trabalhador paga 11% enquanto profissional independente tem de pagar 20,5%. Ou seja, este é prejudicado em 9,5% mensais. Assim, num salário de 1000€ ao longo de 5 anos, o trabalhador pagou, a mais, do seu bolso 5225€
- Faltam os meses de abril a agosto, período em que a CdM dispensou os trabalhadores sem lhes pagar (€ 5000,00)
* (lei só permite reclamar até 3 anos de formação)
Qual é a proposta da Fundação CdM?
- Não paga subsídio de alimentação;
- Não paga férias;
- Não paga formação profissional;
- Não paga as diferenças da Segurança Social;
- Não paga meses de abril a agosto;
- Considera que o salário de 1000€ já comporta esses valores, numa equação semelhante a esta: 1000€:14 meses x 12 meses = € 857,14 (que considera ser o salário bruto dos trabalhadores)
- Apenas aceita pagar os subsídios de férias e de Natal com base no salário de 857,14€ (e não os 1000 efetivamente auferidos)
- Soma subsídios dos anos todos, sobre os quais aceita pagar só 30% do valor.
- Conclusão: para um retroativo que devia ser de 28 250€, a CdM aceita pagar apenas 2500€. Ou seja, menos de 10% do valor efetivamente devido.