Conhecido pelo seu trabalho de ator, Alexander David estreou-se como realizador com a longa "A Primeira Idade". Depois de passar por Roterdão e pelo Indie Lisboa, o filme estreia em exclusivo na plataforma Filmin.
Corpo do artigo
Projeto raro no cinema português, pela sua conceção, pelo tema e pela sua frescura, a história do filme passa-se numa ilha quadrada, onde vive uma comunidade isolada, cercada por uma floresta, habitada unicamente por crianças. Nenhuma delas sabe falar e não querem envelhecer. Quando uma delas alcança a idade adulta é expulsa da ilha. Estivemos a conversar com Alexander David.
Quando é que nós adultos perdemos a inocência?
Não há um momento exato em que se perde a inocência. Se calhar é quando se deixa de fantasiar sobre coisas ou de achar que o mundo é um lugar seguro. É quando se perde a esperança e se fica mais cínico. Não há um momento específico.
Os seus filmes como realizador abordam esse período da infância.
Eu gosto de construir esses mundos, do universo infantil, onde os miúdos fantasiam ou estão a imaginar e se projetam coisas mais concretas, sérias e específicas para eles. Em "A Primeira Idade" é muito mais abstrato como isso surge, mas na minha curta, mais recente, isso é mais específico. É sobre a criança projetar-se no futuro, o que poderá ser.
De onde vem a necessidade de falar desse universo em especial?
Não sei se não será também uma ideia de jogo de cinema. É uma zona mais livre, onde eu posso estar a brincar mais. Por outro lado, também dizem que os primeiros filmes são sempre sobre a infância. Começamos por olhar para nós próprios, quando éramos miúdos. Se calhar estou a fazer isso e a tentar perceber o que é o meu cinema. Eu acho que é isso, a longa-metragem foi um bocado o meu curso de cinema. Estou a tentar perceber o que me interessa, aquilo que quero explorar.
Foto: DR
Esta história tem um lado universal, mas pensa-se logo em "O Senhor das Moscas".
Pode ser uma inspiração. Vi uma versão para cinema quando era miúdo. O que queria ser era realizador, era isso que me interessava. O que imaginava quando era miúdo, na minha aldeia, onde este filme é filmado, é que os adultos desapareciam. Era uma sociedade só feita por malta da minha idade.
Este filme vem então de muito longe, de quando tinha a idade das suas personagens.
Temos sempre a ideia de um mundo distópico, onde as coisas são muito mais negras. Porque é que esse mundo não pode ser colorido, com os miúdos a usar estas roupas de carnaval ou de desenhos animados? Mas o ponto de partida tentar pegar no mundo em que eu vivia, na minha aldeia. É uma aldeia de ourives, estão sempre em festa. Mas também era um mundo em que me sentia muito fechado, muito enclausurado, onde o que eu podia ser no futuro, ou o que era o mundo lá fora, projetava muito no cinema.
Onde é que via cinema, quando era miúdo?
Ia ao videoclube e estava sempre a alugar filmes ao fim de semana. Fui percebendo o cinema dessa forma, através de ver os outros.
Como é que foi o processo de escolha destas crianças?
Não houve um processo de escolha. Os miúdos que podiam fazer foram fazer. Nesta aldeia havia uns cinquenta miúdos e cerca de quarenta fizeram o filme. Fizemos uma espécie de workshop, brincar um pouco ao faz de conta, com uma espécie de improvisação. Mas percebi que a miúda que interpretava a rapariga que irá ter o próximo bebé para a comunidade, iria ter um papel muito difícil para uma jovem sem formação. Veio então a Ágata de Pinho, que foi minha colega no Conservatório.
Também identificamos a Joana Ribeiro, ainda muito nova.
Eu queria que o filme começasse com a Joana Ribeiro e pensássemos que fosse um filme com uma estrela de cinema, mas que depois é despachada e desaparece. É como no primeiro "Gritos", que começa com a Drew Barrymore, uma grande estrela de cinema, e depois é logo despachada.
Quanto tempo durou esse período de trabalho com as crianças, antes de começarem a filmar?
Cerca de um mês. Durante um verão, em Vilamar, eu e um amigo meu construímos a história com os miúdos. E começámos a construir os cenários, os habitantes da aldeia participaram muito. Uma senhora de lá é obcecada pelo carnaval, tinha um armazém cheio, eu também peguei em outras coisas da Outra Face da Lua. Os miúdos é que começaram a escolher o seu próprio guarda-roupa. É por isso que a roupa também é um pouco desconectada, é muito acidental, as coisas não batem certo.
Foto: DR
Como é que os miúdos reagiram quando se viram no ecrã?
Os miúdos crescem muito depressa. E quando veem o filme pela primeira vez estão a olhar para si próprios. Percebem também que uma cena aqui e ali foi cortada. Mas já sabiam que de certa forma ia ser um objeto estranho.
É mais difícil ser criança hoje ou quando tinha aquela idade?
Acho que antes era mais fácil ser criança. Mas talvez haja um certo saudosismo. Quando ia ao videoclube, escolhia dois filmes e eram esses que via. Essa escolha era muito importante para mim. Esses filmes iam ficar comigo, durante algum tempo. Não sei se isso acontece agora, os miúdos veem muitas coisas, mas veem coisas muito resumidas. É tudo muito fragmentado, muito rápido. Os miúdos de hoje têm muito mais acesso à informação, mas há um grande défice de atenção. E nós adultos já estamos muito nisso.
Como é que concilia o trabalho de ator com o de realizador?
Não dá para conciliar, por isso estou parado com o meu trabalho de ator. Fiz uma curta para o João Pedro Rodrigues, mas tenho estado muito mais concentrado no meu trabalho, estou no processo de escrita de uma longa. Se houver um convite posso voltar a trabalhar como ator, mas tenho de gostar muito do projeto. Tenho pouca paciência para estar num décor à espera. Um ator de cinema é a arte de estar à espera. É muito doloroso para mim. Tenho muito mais prazer no trabalho de realização, de estar a criar, a divertir-me.
"A Primeira Idade" teve um modelo de produção muito especial. É nesse tipo de registo que quer continuar a trabalhar?
Foi o modelo de produção que fez sentido na altura. Foi o meu primeiro filme, não tinha feito nenhuma curta. Não estava muito interessado em fazer o percurso típico do cineasta português, fazer umas curtas, esperar que corram bem e que sejam um passaporte para uma longa. Não sabia muito bem o que estava à procura na altura, que filme é que poderia fazer. Fez sentido estar a fazer um filme com a malta da minha aldeia e com amigos meus próximos, que também estavam a aprender.
Foto: DR