A placa, gigantesca, horrível, aparece asssim, a meio caminho entre o nada e lado nenhum. É o planalto tibetano em todo o esplendor, algures pelos quatro mil metros de aperto no coração. Sossegar a respiração é um desafio, acalmar os ânimos contra um motorista local transido de medo de se desviar das rotas fixadas pelos chineses é outro, mais duro ainda. A placa está justamente na rota.
Corpo do artigo
Assim, do nada, grita a quem passa "Xangai, 5000 km". Lhasa, capital da região, não tem direito a placas. Há uma aldeia por detrás. Chama-se Seme, coisa indiferente, como todas as do percurso, casas tibetanas e camponeses enegrecidos, sempre prontos a estender a mão para o "uane dola". E há também um morro com uma amostra de templo em equilíbrio precário. Não consta dos mapas. Uma desatenção do motorista, um pontapé no programa de precisão achinezada e foge-se para um dos pequenos pedaços possíveis do Tibete do imaginário ocidental. Do silêncio de um pátio cheio de tralha surge um homem escanzelado. Sorriso tímido, expõe a vida com gestos, a ínfima sala de orações, milhões de tesouros sem valor, unhas enegrecidas pela pobreza a dedilhar - finalmente! - uma trompa. O som espalha-se pelo silêncio e faz vibrar a alma. Não tem grande nexo. Sai do instrumento com a ajuda de um centímetro de palhinha de coca-cola. O engenho da simplicidade. Os budas quase não se vêem, de tão pequenos, o gongo é emprestado sem nada em troca, a outra sala, lá ao fundo, é a cozinha-dormitório, escura como o passado rural de Portugal, cheiro a fumo entranhado no ar, como no negro das vestes vermelhas do homem. Um inesperado convite para sentar. O monge é dos verdadeiros e não daqueles de pechisbeque que enchem os templos-museu-posto-de-vigia-chinês das grandes paragens obrigatórias e dos nomes grandiosos. A chaleira amassada já ferve ao lume do sol, flutuando sobre um daqueles painéis que há por todo o país, como por todo o mundo há parabólicas. Num recipiente tubular, macera-se a manteiga de iaque a que se há-de juntar a fervura das folhas de um chá. E do alpendre desce a perna ressequida de cordeiro, sabor acre a bedum esgotado pelo tempo. É uma náusea engolir sorrindo, agradecer o nada que aquela mão divina estende, é uma agonia ter de repetir. Cá fora, faz-se como por lá, pedras em montículos, altar à sabedoria. A trompa ainda ecoa lá em cima.