Novo livro do autor de "O beco da liberdade" evoca episódios soltos mas representativos de uma vida preenchida como poucos.
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Mais do que um livro de memórias, Álvaro Laborinho Lúcio escreveu, em “A vida na selva”, um livro com memórias dentro. A ligeira diferença não é de somenos: se as autobiografias têm quase sempre a pretensão de abarcar tudo o que já foi vivido, num exercício literário onde a ficção é sempre chamada a depor, o registo escolhido foi, ao invés, de uma natureza fluida e, por isso mesmo, porventura mais próxima de oferecer um retrato aproximado da realidade.
Sem esforços redobrados de reconstituição, “escorrendo em palavras a partir de uma mistura de lembranças e esquecimentos”, Laborinho Lúcio “busca a verdade nos olhos que a veem”, certo de que por cada ser existe uma visão pessoal e intransmissível. Mesmo que os acontecimentos vividos por um grupo sejam exatamente os mesmos.
Como Chateaubriand, que cita na epígrafe, o autor de “O beco da liberdade” mais não quis do que dar conta de si mesmo, “explicar o meu coração inexplicável, ver finalmente o que poderei dizer, quando a minha caneta sem constrangimento se abandonar a todas as minhas memórias”.
Nesta incursão biográfica fragmentada mas ainda assim coerente, o “aconchego da memória” não é tanto um auxiliar como uma ferramenta, imprescindível para dar forma a episódios ou figuras esmaecidos pelo tempo.
Pelo poder da palavra e pela capacidade que esta tem de tornar próxima a matéria pertencente ao passado, o antigo ministro da Justiça recupera testemunhas de outras épocas e lugares. Talvez até de vidas, porque, como escreve “ninguém nasce de uma vez. Nascemos aos poucos, pelo tempo fora”.
Os tempos de meninice – em que se apercebeu pela primeira vez das desigualdades sociais, ao partilhar os bancos de escola com colegas que nem sequer tinham posses para o calçado –, o convívio com figuras como Natália Correia e Luis Sepúlveda ou a jamais adormecida paixão pelo teatro pontuam algumas destas crónicas, escritas para fins muito diversos, como conferências e revistas, mas todas devidamente cerzidas pelo fio da memória.
Os quatro eixos em torno dos quais os textos estão agrupados (nascer, voar, lutar e partir) são desdobramentos de uma vida em que a vontade de perceber e dialogar com o outro tem sido uma constante.
A vida na selva
Álvaro Laborinho Lúcio
Quetzal