Pianista atua esta sexta-feira em Matosinhos e no domingo estará no Festival MED, em Loulé. Novo álbum é um ponto de viragem, confessa Amaro Freitas ao JN, e sairá no início de 2024
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Aos 31 anos de idade, Amaro Freitas conseguiu um estatuto no jazz brasileiro contemporâneo que mais ninguém terá. “Sakofa” (2021), o seu último álbum, foi parte fundamental da receita de sucesso. Foi também o encerrar de um capítulo, que reflorescerá (com uma boa dose de ligação à natureza) no próximo disco, a ser lançado no início de 2024.
Ao Jornal de Notícias, Amaro Freitas fala do olhar do Brasil sobre o jazz, do processo criativo para o novo álbum e do público português que tem criado. O pianista, atualmente em digressão num trio que conta com Aniel Someillan no contrabaixo e François Morin na bateria, atua esta sexta-feira no Teatro Constantino Nery, em Matosinhos, e este domingo chega ao festival de world music de Loulé.
É diferente subir a palco em nome próprio, num auditório, ou apresentar-se em alguns dos maiores festivais de música do Mundo, como tem feito?
Creio que o espetáculo em sala de teatro é mais acolhedor no sentido de estarmos juntos num ambiente fechado. Consegues falar com bastantes pessoas. E senti-las de outra forma. A energia vivida gera uma dinâmica em que podes tocar músicas um pouco mais lentas, tocar música sozinho no piano, tocar umas coisas mais cabeçudas, tem hora que toca uns ritmos mais mexidos... o espetáculo tem uma dinâmica muito maior. Eu acho que dá pra criar um roteiro dentro de um teatro que não dá dentro de um festival. Quando se toca num festival e o espetáculo precisa ter 50 minutos, e ainda por cima é ao ar livre, você toca as músicas mais quentes, mais conhecidas.
Como é a estrutura dos seus concertos? É muita fechada ou há liberdade para criar momentos não planeados?
A gente tem uma estrutura, pensando a música, em dois pilares importantes. O primeiro pilar é que existe uma complexidade que trabalha muito os ritmos de polirritmia, isorritmia, é uma música que exige uma certa técnica e uma certa colaboração. E essa é uma estrutura da arquitetura da música, ou seja, tem regras, mas, pelo outro pilar, dentro dela sempre se abre uma porta para a improvisação espontânea. Nesse momento que estamos tocando a arquitetura da música, estamos muito juntos, atentos uns aos outros. Então, é na hora da parte mais livre da música que a gente vai improvisar. O que mais importa é o espírito de cardume: se eu estou improvisando e eu gero algum tipo de contexto, alguma atmosfera, algum tipo estético sonoro no piano, que pode ser tanto utilizando as teclas ou entrando com a mão dentro do piano. É muito importante para mim que o baixista e o baterista naveguem comigo nesse movimento, nesse acontecimento espontâneo.
Como é que foi a escolha destes dois artistas para a tournée em trio?
Eu já vinha estando de olho no trabalho do François, um baterista francês que morou durante oito anos no Brasil. E por ter lá vivido, ele já saca muita coisa de ritmo brasileiro. Já o Aniel, aconteceu que, no ano passado, fiz várias apresentações onde conheci alguns músicos que são consagrados no universo da música instrumental, e, no meio disso tudo, encontrei o Aniel e gravei algumas coisas que já são para o meu próximo disco. E foi aí que eu vi e vivi a vibração do Aniel e eu amei essa sensação. Eu gosto muito do desafio do novo.
O que é que já se pode saber do próximo álbum?
Esse novo álbum vai trazer algumas participações internacionais que estão em destaque no cenário do jazz atual. É um álbum que viaja pela diáspora africana, nesse sentido de conectar onde todas essas pessoas pretas chegaram. Vai ter Cuba, vai ter Estados Unidos, vai ter Inglaterra. É um álbum que está muito ligado à espiritualidade e à ancestralidade, no sentido da natureza. Um dos grandes homenageados desse álbum é o Nana Vasconcelos, um grande percussionista pernambucano que fez um trabalho baseado no som da mata da Amazónia. Então, inspirado nisso, passei um tempo em Manaus, no Brasil, conectado com a abundância de água. Portanto, o disco traz essa conexão com a água como um grande fio condutor. Quando você pensa nessa questão da imigração, do período da colonização, ele aconteceu através da água.
E como é que, tecnicamente, esses sons da natureza e da água vão acontecer?
Eu uso um elemento que foi desenvolvido por um grande cientista e pianista chamado John Cage, que desenvolveu uma técnica chamada “piano preparado”. O “piano preparado” é quando você coloca coisas dentro do piano para tirar outros tipos de som. John Cage fazia isso com parafuso, porca ou outros objetos de metal. Eu comecei a desenvolver isso utilizando madeira, como, por exemplo, usando uma mola da roupa. Também há um aparelho chamado “ebow”, que você coloca na guitarra para tirar uns harmónicos, e eu pego nele e coloco no piano. Coloco nas cordas e ele começa a gerar sons como se fossem cantados, que para mim representa a natureza, o som do mar, dos golfinhos.
Se se sentia, dos dois primeiros álbuns para este último, uma maior complexidade instrumental e mais risco. O novo disco segue essa escalada?
Esse disco de agora traz uma outra versão do Amaro. E essa é uma preocupação que eu tenho com a minha carreira. Mudar. Eu fechei uma trilogia, onde eu gravei “Sangue negro” (2016), “Rasif” (2018) e “Sankofa” (2021). Nesses, tem toda uma caminhada do trio juntos, eu, Jean Elton e Hugo Medeiros que me acompanhavam. Esse novo disco aponta um novo movimento, um novo caminho, para mim e para a música brasileira.
Ainda há um desligamento do Brasil com o jazz?
Não, o Brasil está muito aberto. O que acontece é que o Brasil é muito grande. O Brasil é um país que praticamente o ano todo é tropical, então vai ter o funk, vai ter o sertanejo, que têm uma indústria muito potente, com muito dinheiro, e fazendo com que essas coisas apareçam na TV e toquem na rádio. Aqui no Brasil, o que eu acho é que tem um grande problema de formação, e não é só da população. Existe um problema de formação na população em geral, no sentido de poucas pessoas conhecerem jazz e terem, por exemplo, acesso a um piano. Mas também existe uma falta de formação por parte dos músicos, de como saber disseminarem o seu trabalho. Hoje, para mim, na mesma proporção que eu ganho e toco na Europa, eu toco e ganho no Brasil.
E o público é diferente dentro e fora do Brasil?
Aqui no Brasil, existem as pessoas que acedem ao jazz e existem as pessoas que não acedem ao jazz. Na Europa, existem as pessoas que curtem o jazz mais tradicional e existem as pessoas que estão abertas para o jazz mais contemporâneo. Eu diria que, para mim, essa é a diferença.
Em Portugal espera ter cada vez mais público brasileiro?
Tem várias pessoas do Brasil que vão aos meus espetáculo, mas curiosamente a gente está formando um público português muito forte. No meu primeiro concerto cá, por volta de 2018, eu tinha apenas um grupo de amigos portugueses a assistir, que foram depois repetindo concertos. Mas com estes anos de trabalho, cada vez tenho mais seguidores em Portugal. E, agora, o meu espetáculo tem grande parte de brasileiros, sim, mas uma grande parte também de portugueses.