
"Che Guevara é uma personagem muito contraditória e um verdadeiro D. Quixote dos tempos moderno"
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No seu novo romance, "À Procura da Manhã Clara", Ana Cristina Silva escalpeliza a vida de Annie Silva Pais, filha do último diretor da PIDE que se deixou tentar pelos ideais da revolução cubana. Foi uma mulher "impulsivamente apaixonada por uma causa", diz a autora.
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Há muito que Ana Cristina Silva planeava escrever sobre Annie Silva Pais. Afinal, diz, a sua vida reuniu todos os predicados necessários para a escrita de um romance capaz de agarrar os leitores.
Impressionada com a "natureza venturosa" de uma mulher que desafiou tudo e todos, ao abandonar o marido para viver o ideal da revolução cubana, a autora de "O Rei do Monte Brasil" levou por diante um amplo trabalho de reconstituição histórica que teve na densidade psicológica de Annie o seu principal enfoque.
Ao terminar a escrita, após um ano, acredita ter ficado próxima da essência desta personagem: "É esse o poder da literatura: chegar às verdades mais intimas da alma humana através do que é aparentemente ficção".
Ao contrário do que é muitas vezes comum em biografias similares, não trata Annie nem como heroína ou vilã. Quem foi, afinal, esta mulher, em seu entender?
Annie foi uma mulher em busca do amor. E também uma mulher em fuga. Fugiu da opressão materna e do cinzentismo opressivo de Portugal durante o Estado Novo. Fugiu do próprio marido diplomata. Fugiu da dor de ser abandonada, procurando novas relações. Muitas das escolhas que fez do ponto de vista pessoal e amoroso revelam padrões de fuga e de busca por um amor ancestral que lhe faltou.
Quando alguém troca uma vida confortável, como Annie tinha, pela incerteza a vários níveis, costuma ser apelidada de louca, inconsciente ou, quando muito, corajosa. Qual o adjetivo mais adequado para definir a vontade de Annie deixar tudo para trás em nome do amor?
Apaixonada, impulsivamente apaixonada por uma causa.
Qual o traço do caráter de Annie que se revelou decisivo para a sua decisão de escrever o livro?
Mais do que um traço de caráter em particular, terá sido a natureza venturosa da própria história de vida. Uma mulher nascida no seio da alta burguesia durante o Estado Novo, filha do último diretor da PIDE, casada com um diplomata suíço colocado em Cuba que depois de um momento de paixão por Che Guevara deixa tudo e abraça a causa revolucionária cubana. Dá vontade de escrever um romance ou não? De qualquer modo, quando escrevo um romance biográfico, geralmente a personagem tem de ser algo enigmática, sendo que a escrita me dá acesso à decifração do seu mistério. Os jornalistas José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz realizaram no princípio deste século uma investigação jornalística que foi publicada no livro "A Filha Rebelde" e foi a leitura desse livro que me motivou para escrever o romance sobre Annie Silva Pais. Quando li a reportagem jornalística senti que todos, ou quase todos os factos da vida dela estavam lá e extraordinariamente bem descritos, mas ela, a sua interioridade, pareceu-me desenhada de forma algo opaca. Curiosamente quando falei com pessoas que trabalharam com Annie Silva Pais na 5ª Divisão durante o verão de 1975, as suas amigas referiram-se sempre a uma aura de mistério. Ela era extremamente acessível e ao mesmo tempo reservada, segundo as suas palavras. E foi esse mistério que me propus decifrar, porque os escritores têm a enorme vantagem de poder cruzar a ficção com a realidade, dando vida à interioridade da alma das personagens que se propõe romancear.
"Conhecendo-a" como acabou por "conhecer", o que acha que terá pesado mais na decisão de Annie de largar tudo?
Cuba, no principio dos anos 60, era uma festa, uma festa revolucionária, em tudo oposta ao cinzentismo e à opressão vivida em Portugal. Dois anos depois de ter chegado a Cuba, Annie abandonou o marido por ter uma péssima relação com ele e por se ter apaixonado por Che. Não foi uma opção verdadeiramente politizada no sentido exato do termo, mas depois de ter feito essa escolha, dedicou a sua vida à causa revolucionária.
O meu "conhecimento" diz-me que a natureza das relações com os pais terá modelado e muito a personalidade e as opções de Annie Silva Pais. D. Nita, a mãe, era uma mulher bela e fútil que tinha ciúmes da filha. Toda a história de Annie é também a história da oposição à vida que a mãe desenhou para ela. Por outro lado, o pai, o terrível fascista, foi sempre objeto de amor de Annie porque a protegia das críticas da mãe. Não é por acaso que antes de casar com embaixador suíço, no final dos anos cinquenta, Annie teve dois namorados estrangeiros, um sueco e outro francês. Homens estrangeiros seriam uma espécie de passaporte para fugir de Portugal. Também não será por acaso que as principais relações amorosas de Annie terão sido com figuras proeminentes do regime cubano. Além de Che, o médico pessoal de Fidel e o ministro do Interior José Abrantes.
"Quando terminamos um romance biográfico acreditamos sempre de que conseguimos dar vida aos vestígios deixados pela nossa personagem"
Terminou o livro com a crença de que capturou a essência de Annie?
Quando terminamos um romance biográfico acreditamos sempre de que conseguimos dar vida aos vestígios deixados pela nossa personagem. Demorei mais de um ano a escrever este romance e a certa altura somos invadidos pela ficção de tal forma que tomamos também o que inventamos como verdade. Se calhar é esse o poder da literatura: chegar às verdades mais intimas da alma humana através do que é aparentemente ficção.
Surpreende-a de algum modo que a venturosa vida de Annie tenha inspirado poucos criadores?
Houve uma peça de teatro escrita pela Margarida Fonseca Santos que foi levada à cena no Teatro Nacional em 2007 e parece que vai passar uma série sobre Annie Silva Pais na televisão a partir de setembro. Portanto, não fui a única a ser inspirada por ela.
Como procurou suprir as eventuais lacunas em torno da sua biografia?
Os factos mais importantes da vida de Annie são mais ou menos conhecidos depois da investigação de José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz, as lacunas são o espaço da ficção. Por exemplo, é pouco provável que tivesse havido um encontro entre Annie Silva Pais e Vargas Llosa, mas ambos foram à conferência tricontinental de Havana em 1966. Poderia ter acontecido, embora fosse pouco provável, mas isso permitiu-me discutir o papel da literatura numa revolução. Enquanto romancista, posso fazê-lo. Ninguém sabe como foi o encontro sexual entre Annie e Che, ou mesmo se aconteceu, como ela soube da sua morte e o que fez com o seu desgosto. E essa é a diferença entre uma biografia ou uma reportagem jornalística que está limitado aos factos e um romance biográfico onde se pode ficcionar. A narrativa dessas circunstâncias e de outras não é senão uma invenção que parece plausível tendo em conta o que é conhecido da sua história de vida. Mas uma invenção que pretende penetrar nos conflitos de Annie Silva Pais, nas suas emoções, desgostos, sentimentos possíveis e mesmo prováveis tendo em conta os factos.
Além disso há a forma de narrar, o modo como a estrutura narrativa está ao serviço da história que se pretende contar. Neste caso temos cartas ficcionadas que nunca foram enviadas à mãe, ao pai, a Che, a amigas, e a outros amantes, cartas essas que antecipam e enquadram o que a narradora vai contar em cada capítulo.
Embora estejamos a falar de uma biografia, procurou por certo que a biografia fizesse justiça à sua figura. Que traços da personalidade se esforçou para colocar em evidência no livro?
Se calhar o traço mais surpreendente é o facto de de Annie ser ela própria uma ficcionista da sua vida, um pouco mitómana, em que as mentiras não servem outro fim senão o de ajustar a sua vida à narrativa que ela gostaria que tivesse acontecido. Esse facto foi-me dado a conhecer por algumas conversas tidas, via Zoom, com Valdemar Cruz. Por exemplo, ela afirmou a algumas das suas amigas de Portugal, do tempo da 5ª divisão que teria vivido quase maritalmente com Che, ora há registo de uma faísca intensa entre ambos, mas não de uma relação prolongada. E isso seria provavelmente conhecido. Outra facto curioso é a história do colégio onde foi educada. Ela foi educada no colégio Sagrado Coração de Maria, mas em Cuba disse a uma das suas amigas que teria sido educada num colégio em França, longe, portanto, da influência fascista do pai.
Num Portugal mais livre como é o atual, o que acha que Annie faria hoje?
Acho que poderia ser mais feliz e não seria definitivamente a mesma. Aquela velha história do Ortega y Gasset de que não podemos separar o homem das suas circunstâncias e do contexto em que foi criado é mesmo verdade. A Annie que existiu foi educada por aqueles pais, num Portugal fascista. A Annie a viver em Portugal no momento atual, talvez fosse uma ativista por causas ambientais ou de maior justiça social.
"Mas dedicou a sua vida à causa revolucionária e, portanto, nós vemos a realidade pelas lentes do que acreditamos. É assim com Annie e com todos nós"
Que tal foi a experiência de trabalhar ficcionalmente uma figura mítica como Che Guevara?
Quando escrevemos um romance todas as personagens nos "devoram" de igual maneira, independentemente de serem ou não um mito. No caso do Che fez-me ler duas biografias e ficar a conhecer muitos episódios sobre a sua vida que não conhecia. Ele também merecia um romance, focado apenas nele (mas já deve haver muitos!) porque é uma personagem muito contraditória e um verdadeiro D. Quixote dos tempos modernos.
A maior parte das pessoas que se envolvem, de forma altruísta ou apaixonada, numa revolução, acabam por sair desapontadas. Por que é que acha que isso não aconteceu nos mesmos moldes com Annie?
A Annie talvez fosse relativamente inflexível, no sentido de que depois de abraçar uma causa não a discutia. Como disse anteriormente, as fontes indicam que ela não era muito politizada, não terá feito estudos muito aprofundados de Marx, Lenine, etc. Mas dedicou a sua vida à causa revolucionária e, portanto, nós vemos a realidade pelas lentes do que acreditamos. É assim com Annie e com todos nós.
Acredita que é mesmo inevitável que as revoluções acabem em desilusão?
As revoluções são sempre a busca por uma sociedade melhor, com menos desigualdades, mais oportunidades e mais solidariedade. Independentemente do que aconteceu em cada uma das revoluções em particular, começando pela Francesa, a Utopia é necessária. E é necessária para dar um rumo ao progresso social que necessariamente tem de existir. Como diz Galeano, "a utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos e ela afasta-se dois passos. Para que serve a utopia? Para que não se deixe de caminhar."
O que pode oferecer um romance na compreensão da História que um manual ou ensaio não consegue?
Um leitor aqui do Norte referiu-se exatamente a essa questão a propósito de "À Procura da Manhã Clara", num post que colocou no Facebook. Os romances não têm de obedecer aos espartilhos mais ou menos cinzentos do rigor científico, o que não significa que não devam ser rigorosos nas suas fontes. O processamento da informação é facilitado pela narrativa, a narrativa é uma das formas naturais de elaborar os factos desde crianças (todos nós somos narradores da própria vida e vamos alterando a nossa narrativa com o passar dos anos). Isto significa que a um romance pode ampliar a nossa compreensão dos factos históricos na medida em que conduz o leitor a conjugar a dimensão cognitiva e emocional. Basta pensar, por exemplo, no Holocausto e do impacto que pode ter um livro como "Se isto é um homem", do Primo Levi, e o impacto de um manual de história onde são descritos o número de vítimas e as modalidades de genocídio aplicadas. Nos romances, os indivíduos deixam de ser números e os factos não são apenas descritos, mas vividos por personagens e isso é importante para a visão mais aprofundada e quase existencial de um determinado contexto histórico.
Que atributos deve ter um possível biografado para captar a sua atenção ao ponto de desejar escrever um livro sobre ele?
A sua vida tem de evidenciar um conflito que eu não consiga explicar. Carolina Loff da Fonseca, por exemplo, era uma comunista que se apaixonou por um Pide. Al` Mutamid matou com as próprias mãos o seu melhor amigo por questões de poder. Ou então, a sua vida terá de ter sido suficientemente tempestuosa para me apaixonar, como foi o caso de Florbela Espanca ou Rimbaud e também Annie Silva Pais. Há, no entanto, um denominador comum: para eu passar pelo menos um ano no interior de um romance biográfico: tenho de apaixonar-me pela minha personagem.
Embora o arco temporal que os seus livros cobrem seja muito amplo, parece haver uma predileção especial da sua parte pelo período do Estado Novo. O que a atrai em particular nesse período?
Em 15 romances publicados houve apenas três que incidiram sobre o período do Estado Novo. Em "Cartas Vermelhas" e no "À procura da Manhã Clara", mais do que o período foi o enigma das minhas personagens, Carolina Loff da Fonseca e Annie Silva Pais, que me atraíram. No caso de As Longas Noites de Caxias" é diferente. Trata-se de um romance que tinha, de certo modo, objetivos pedagógicos no sentido em que considero que as gerações mais novas, e quando digo mais novas refiro-me a pessoas com menos de 40 anos, têm pouca noção dos horrores do fascismo. Do que foi viver sob a ditadura do medo, como está tão bem descrito no poema de Alexandre O´Neill. Do atraso e da miséria de Portugal durante o período do Estado Novo.
" A prisão em Caxias, a Primeira Guerra Mundial, a Inquisição, a violência doméstica são temas que foram abordados por mim em romances"
O que une (ou separa) Florbela Espanca, Rimbaud, Al'Mutamid ou Leninha, algumas das figuras cuja vida biografou nos seus livros?
Os três primeiros são poetas. Eu não escrevo, nem sequer tentei escrever poesia, mas adoro poesia. Os três foram excelentes poetas, de vidas familiares muito atribuladas, o que terá moldado a sua expressão artística. A poesia era o seu modo de expressão natural, a poesia escorria-lhes da alma. A Leninha (Madalena Oliveira, a pide feminina que subiu mais alto na hierarquia da PIDE) não tem nada a ver com os outros. Era uma sádica, que foi feliz a exercer o poder da maldade no exercício das suas funções na PIDE, um tipo de personalidade que floresce nesse tipo de instituições e que se encontram em todas as polícias políticas e não só.
Há muitos autores que escrevem romances - sejam históricos ou de pendor biográfico -, mas são poucos os que investem numa componente psicológica tão acentuada. Diria que é o principal elemento distintivo dos seus livros?
Sem dúvida que a componente psicológica é uma das dimensões que faz parte da forma como eu escrevo, que marca a maneira como mergulho e sou invadida pelo romance que, no momento, me ocupa os dias. Eu gosto que a descrição das ações seja reveladora de uma certa interioridade, que indicie as motivações mais profundas das minhas personagens, algumas das quais nem elas, as personagens, têm bem consciência. Além disso, gosto de manipular estruturas narrativas, procurando uma forma de organizar a narrativa que melhor sustente a história. Também, já me têm apontado que eu escrevo frequentemente sobre situações-limite, o que, de algum modo, é verdade. A prisão em Caxias, a Primeira Guerra Mundial, a Inquisição, a violência doméstica são temas que foram abordados por mim em romances.
Até que ponto o amplo domínio que tem na área da Psicologia lhe é útil na caracterização de uma personagem? Há muito trabalho que, por via desse conhecimento prévio, se dispensa de fazer, devido a essa razão?
Apesar de investigar e trabalhar na área da educação no ISPA, nomeadamente na aprendizagem da leitura, a minha formação de base é clínica, pelo que certos modos de apreensão conceptual no domínio da psicologia são para mim naturais E, provavelmente, isso facilita-me na composição da densidade das personagens. Por exemplo, quando escrevi sobre a Florbela Espanca parti da hipótese de que ela era uma "borderline", tendo conta o seu contexto familiar e os eixos principais dos seus poemas (o amor sempre inacessível, a morte, a superioridade através da poesia). Quando escrevi sobre a violência doméstica, tinha antes estudado o ciclo violência que é frequente as vitimas vivenciarem. Também no "À Procura da Manhã Clara" isso está presente na leitura que faço do seu contexto familiar e sobretudo do impacto da mãe na vida de Annie, uma mãe que contraria a fama de todos os instintos maternais.
Todas as vidas, mesmo as mais torpes, são dignas de uma biográfica?
Todas as vidas são passíveis de serem romanceadas depende sempre se se consegue ou não transformar essa vida num objeto literário que agite ou incomode a consciência os leitores.
Já sabe quem será a próxima figura histórica, célebre ou anónima, a figurar na sua galeria de biografados?
Sei, e já estou a escrever. É, no entanto, de assinalar que não escrevo apenas romances biográficos. Gosto de o fazer porque me proporciona um contexto para interpretações mais profundas de uma existência, mas romances como "A Noite não é Eterna" ou "A Mulher Transparente" são pura ficção. A figura sobre a qual estou a escrever interessa-me porque me interessam as questões do poder, o ópio do poder e a crueldade do poder. Podia estar a escrever sobre o Putin, que seria mais ou menos a mesma coisa, mas não é o caso.
