Coreógrafa de 27 anos, do Porto, estreia esta terça-feira no Teatro Constantino Nery, em Matosinhos, a sua segunda criação. "Iceberg" é um ensaio sobre a vida e a morte que nos confronta com o aborto e a religião.
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Primeiro vamos ver um anjo, branco e anunciador, ele desce do céu para dançar num asfalto nevado, vai explicar-nos as suas razões. Depois vemos o seu anverso, ou o seu reflexo maléfico, é outro anjo, tem penas negras, mesmo negras, de preto compacto, como se fosse uma só treva homogénea, e também ele se vai desvendar em pliés, jetés, frappés e tendus. Mas, como no outro, também os seus gestos parecem alterados ou infetados por alguma indecisão, como se fossem gestos degenerados ou gestos perversos operados por seres mutantes.
Depois, os dois envolvem-se, duelam em dueto e assenta-se no espectador a dúvida sobre o que estamos a ver - são anjos, são cisnes, são panteras lentas, são uma só aranha que avança determinada para nós a sorrir?
Por fim vemos uma mulher grávida a dançar, ela está só, vai convocar ainda mais solidão, veste-se de azul sideral, traz um tule dourado a lucilar. Depois ainda, prestes a epilogar, como se o teatro fosse feito de artérias e de veias e todos fossemos um só organismo animal, vamos ver sangue.
"Iceberg", a peça coreográfica que é uma pesquisa sobre a vida e a morte efetuada através da figura da mulher, é um dos acontecimentos maiores do DDD - Dias da Dança, festival anual do Porto que ainda corre até dia 30 de abril.
"Estou a falar de aborto", diz desarmadamente Ana Isabel Castro, 27 anos, bailarina, coreógrafa e autora de "Iceberg" que nunca é retilínea ou linear. A não ser quando quer: "Estou também a falar de religião. Aquela mulher, que não sabemos por que está a dançar, pode ser Maria ou a sua prima Isabel, ambas visitadas pelos anjos anunciadores, ou pode ser outra mulher qualquer. Essa mulher engravidou celestialmente", mas, pergunta Ana Isabel Castro, "ela deu o seu consentimento para engravidar?".
Partindo da mitologia bíblica, a peça cujo nome nos remete "para um lugar frio e implacável, um lugar onde é possível matar", é um encadeamento de três solos e um dueto - além de Ana Isabel Castro, o elenco contém Aline Lopes e Liliana Oliveira - em que o ritual litúrgico e o ritual performático se confundem, criando um novo objeto de palco híbrido entre a evidente celebração da vida e a sua inevitável consequência mortal.
Em dois andamentos distintos, tanto somos sonoramente assaltados por uma valsa de centelhas apocalípticas pós-rock, em que a beleza está embuçada e oprimida (Godspeed You Black Emperor), como pelas cordas esganadas do amor amaldiçoado de "O lago dos cisnes", de Stravinsky, como pela cosmologia jazz de Alice Coltrane. O som de "Iceberg" é o som de um organismo pulsante, em construção lenta, enervante, erguendo-se gradativamente numa tremenda afirmação de autonomia e desobediência de uma mulher que convoca a história e a memória e afirma a sua soberania.
Como já sucedia em "Marengo", a sua criação anterior, que misturava clássico e barroco, lírico e contemporâneo, visível e invisível, ingenuidade e provocação, história e memória, também agora Ana Isabel Castro se permite o salto das várias interpretações, inclusive as contrárias.
"A vida comporta mais do que uma interpretação diferente do mesmo acontecimento, tanto para quem o produz como para quem o vê", diz a fulgurante coreógrafa do Porto. "Ninguém é só puramente bom ou completamente mau, todos somos humanos e ambivalentes, possuímos em nós valores que podem ser simultaneamente opostos, como o amor e o ódio, que tantas vezes se sobrepõem".
Como um cometa negro que atravessa o cosmos da dança nacional, deixando um lastro permanente mesmo após a projeção daquilo que está a criar, Ana Isabel Castro é um corpo em permanente estado de sítio - está alerta, está em modo sensitivo, está disponível para agir decisivamente dentro de toda a sua capacidade e vulnerabilidade de mulher.
A sua maior arma é cada vez maior: dança com um sentido insondável, anfibológico, que permite várias interpretações,. A dança parece estar sempre contaminada ou corrompida por outra influência maior: aos gestos clássicos de grande competência técnica, que são subvertidos e retorcidos, como se o corpo tivesse problemas de sinapse, junta-se-lhes outra tenção, ou desígnio, que parecem ironia e provocação e que são sempre sedução, desafiando o público a questionar progressivamente o que está a ver. É como se a sua linha narrativa imaculada e original tivesse sido infetada pelo desejo permanente de distorcer a linguagem coreográfica pura - é ballet, é uma quadrilha, é uma polca, é can can, é hip hop, é tango, é funk, é um clássico "grand battement"? É um soco de luva branca em todas as nossas convicções.
"Iceberg", que estreia fisicamente esta terça-feira, traz a promissão do imperdível. Poderá ainda ser vista na sala virtual do DDD nos dias 29 e 30 de abril de 2021 (bilhetes a 3,50 euros).