
Ana Luísa Amaral
André Rolo / Global Imagens
Pelo "compromisso com os direitos e liberdades", mas também pelo elogio do "pequeno e do quotidiano", Ana Luísa Amaral foi contemplada há dias com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, atribuído pelo Património Nacional Espanhol e pela Universidade de Salamanca.
Ao JN, a poetisa, investigadora e tradutora (que entretanto recebeu mais um prémio, o Francisco Sá de Miranda) sublinha o contentamento por integrar um rol restrito de autores galardoados com a mesma distinção.
O que lhe passou pela cabeça quando soube que tinha ganho o Prémio Rainha Sofia?
Total surpresa. Estava a passear a minha cadela, a Emily Dickinson, quando me telefonaram de Espanha. Tive de perguntar duas vezes para ter a certeza. Foi uma quase incredulidade da minha parte. De seguida, antes mesmo de a Comunicação Social espanhola em peso me ter ligado, apeteceu-me imenso fumar um cigarro...
Há quanto tempo deixou de fumar?
Três anos e dez meses. Mas continua a fazer-me imensa falta. Tanto que escrevi recentemente um poema, incluído no meu próximo livro, intitulado "Ode ao cigarro".
Tão significativo como o prémio é receber um galardão que já foi outorgado a Sophia de Mello Breyner, João Cabral de Melo Neto e Nuno Júdice?
É uma companhia maravilhosa. A Sophia está-me no sangue. "O cavaleiro da Dinamarca", que li aos nove anos, foi um dos dois livros que teve maior impacto na minha infância. Lê-lo foi uma epifania, provocou-me febre. Admiro também imenso o Nuno Júdice e considero o João Cabral de Melo Neto um grande poeta.
Nunca se cansa de enaltecer o valor do pequeno e do quotidiano na sua poesia, como diz o júri do prémio na ata?
Não me canso e este livro que vem aí, "Mundo", mais pequeno ainda é. Num dos seus poemas mais célebres, o William Blake falava sobre ver o mundo num grão de areia e o paraíso numa flor selvagem, sustendo o infinito na palma da mão e a eternidade numa hora. Melhor do que ninguém, os grandes românticos souberam avaliar o valor do pequeno, tal como os metafísicos ou os barrocos. O que faz um poeta enorme como John Donne? Escreve um poema sobre o seu desejo em ser uma pulga para poder passear-se à vontade pelo corpo da amada.
Está cada vez mais convencida de que a essência da vida reside nesses pequenos elementos?
A essência da vida reside em tudo. O profundamente pequeno e o profundamente grande tocam-se. Se formos ver ao microscópio as circunvoluções cerebrais reparamos que são muito parecidas com as galáxias. Tudo pertence a tudo e nós fazemos parte desse todo. Um livro é feito de papel tirado de uma árvore que teve átomos que podem ter pertencido a um pássaro, o qual por sua vez pode ter tido átomos de uma pessoa...
O compromisso com os direitos e liberdades está também muito presente no que escreve, como sublinhou o júri do prémio. Que pode um poema contra as injustiças do mundo?
O poema e a arte podem muito. Não servindo à partida para nada - não podemos construir uma casa com um poema ou um quadro -, inscrevem-se no reino do simbólico e servem propósitos que vão para além dos imediatos da nossa espécie, que passam pela alimentação, descanso e reprodução. Imaginemo-nos numa sala sem um livro para ler ou uma música para ouvir. Enlouquecemos, decerto, ainda que nos deem toda a comida que desejarmos e cuidarem da nossa saúde. Não significa isto que a arte equilibra. Pelo contrário. Ela desarruma, mas ao fazê-lo obriga a reajustarmo-nos de outras maneiras e a abrirmo-nos a outras possibilidades.
Apesar do reconhecimento, continua a escrever para "a posteridade do nada"?
Continuo. Não sabemos nada do tempo. Ainda há dias vi um documentário maravilhoso sobre os buracos negros, que me fez lembrar um comentário da Wislawa Szymborska segundo o qual estava cada vez mais convencida que, à medida que envelhecia, tudo o que sabia cabia nos dedos das mãos. Eu acrescento que ainda me sobram dedos... Sabemos pouco, mas essa também é a maravilha: acordar, estar vivo, darmo-nos aos outros e tentar construir algo de melhor à nossa volta.
Como são os seus dias agora, longe das aulas e da universidade?
Não sei para onde me vire. Queixo-me, mas não deve haver nada pior do que entrar na reforma e não ter nada para fazer. Além das solicitações, tenho-me dedicado à tradução. Terminei recentemente livros da Louisa Glück e da Margaret Atwood e estou a ter imenso prazer a traduzir um da Emily Dickinson, "Herbarium". Sou uma privilegiada.

