"Casa Guilhermina" é o novo disco de Ana Moura. Um trabalho de homenagem à família, à liberdade e à multiculturalidade que revela uma artista "disponível para descobrir outros caminhos".
Corpo do artigo
O fado, o fandango ribatejano, o kizomba, o folclore, o flamenco, o semba, todos moram no novo disco de Ana Moura. "Casa Guilhermina" é uma viagem à multiculturalidade da fadista, da sua família e do seu Portugal, mas é também um trabalho quase revolucionário, que cria toda uma nova sonoridade, numa ousada mudança de caminho que a cantora assume que hesitou em tomar. Ao JN, Ana Moura fala de família, de coragem, de riscos e do papel do público neste seu percurso já de 20 anos, mas que agora, sente, sabe a começo.
Sobre si, escrevia-se há dias que teve neste disco a coragem que Amália não teve. Concorda?
Confesso que não li a fundo, vi, mas ando numa vida tão corrida que não li. Falando sem saber exatamente o que referia, penso que a Amália foi super, super corajosa. Porque cantou poetas que não eram considerados fado por exemplo, a vários níveis. Para a sua altura, foi muito corajosa.
Mas pensa que o fado era considerado algo intocável, quase sagrado?
Sim, isso sim. E durante muito tempo confesso que também tive receio, não só musicalmente, mas, mesmo nas minhas entrevistas, queria tanto respeitar o género e a forma como o fado era vivido que tinha receio. Mas neste disco senti-me livre para fazer aquilo que eu queria, e não tinha a intenção de nele fazer fado puro e duro, nenhum género que lá está é puro e duro. Essa base deu-me liberdade para ir buscar elementos dos vários géneros que fazem parte da minha composição musical - e pessoal - e criar como que um género novo.
Quando recebeu o prémio Play por Andorinhas, o primeiro avanço para este disco, agradeceu o público por a apoiar nesta coragem de inovar. Sente que ele esteve sempre do seu lado?
Sempre, incrivelmente do meu lado, aliás é ao público mesmo que eu tenho de agradecer. Porque das pessoas mais próximas foram-me chegando inseguranças, ainda que por bem: que tinham receio que eu me aventurasse por caminhos sem volta, ou porque as coisas tinham até aqui corrido bem, era uma artista bem sucedida. E havia o receio, dos mais próximos, que eu pudesse perder isso. Mas a maior parte do público - é óbvio que perdi público, e que me chegaram mensagens mais negativas -, mas a maior parte recebeu de uma forma que eu não estava nada à espera, mesmo, logo com as "Andorinhas". Até choro ao ver a reação das pessoas através das plataformas, mandam-me vídeos a dançar, põem os bebés a dançar, é maravilhoso.
Pensou no pior cenário, no que poderia acontecer na reação das pessoas? Como lida com as críticas?
Pensei, pensei porque as pessoas que me rodeiam estavam receosas. As críticas, algumas, deixam-me entristecida, mas elas surgiram mais antes do disco sair. Só me apetecia dizer "calma, oiçam primeiro". E a verdade é que depois de sair acalmaram, porque as pessoas pensavam que não ia fazer fado e o disco é uma viagem por todos estes géneros. Há pessoas que me diziam: "Deixei de me identificar totalmente", e, pronto, eu entendo é legitimo...
Mas também ganhou fãs novos, com certeza.
Exato, sem dúvida. Há muitas mensagens que me chegam também a dizer que não se identificavam comigo e agora sim. Há também isso, é a vida, é feita de ciclos.
Lembra-se de quando e como sentiu essa vontade e necessidade de mudar e inovar?
Aconteceu de forma muito natural. Andava em 'tour' pelo mundo e não tinha tempo de parar. Artisticamente, tem de nos ser dado espaço para percebermos em que lugar nos encontramos, para poder criar algo de novo que seja honesto, connosco e com as pessoas que nos ouvem. E andava há anos sem parar e precisava desse espaço. Pedi que me abrandassem a agenda e aí sim, tive tempo de conhecer a nossa Lisboa de agora - acontece muita coisa em Lisboa musicalmente neste momento, e que me faz sentir muito identificada. E deu-me a conhecer os produtores que se juntaram a este disco.
Mas estava descontente com o rumo que estava a tomar?
Não posso dizer que estava descontente com o que tinha feito, não; eu sentia era um vazio, era mais isso e precisava de parar e perceber como preencher esse vazio.
Deixou para trás a editora discográfica e a empresa de management. Para poder ter liberdade criativa que tanto desejava?
Eu não posso responsabilizar essas estruturas de me impedirem de algo, ou de criar o que queria. Por vezes essa mensagem não tem sido bem passada: simplesmente estava com os olhos postos num lugar, e ele era diferente dos olhos das pessoas com quem trabalhava. E quis construir uma equipa que percebesse o caminho para onde eu estava a olhar e que ajudasse a levar essa vontade em frente.
Sem aquele casulo criativo do confinamento em 2020, com o Pedro da Linha, o Conan Osíris, o Pedro Mafama, não haveria o "Casa Guilhermina"?
Pois, acho que não. Porque de repente todos estávamos parados e todos eles têm os seus sonhos, carreiras e sentem a sua urgência. E o facto de estarmos juntos, com o tempo necessário para construir este disco, foi muito importante.
Eles participam cada um à sua maneira, em letras, duetos, produção. Mas também como influência no seu beber de sonoridades, e na sua liberdade?
Exatamente, sem dúvida. Por exemplo o Conan Osíris, do ponto de vista de liberdade, é um artista muito livre, em todos os sentidos: musicalmente, óbvio, mas também na forma como se posiciona, em tudo, até esteticamente ou nas referências a que recorre para as músicas dele. Ele é mesmo muito livre e eu adoro essa liberdade e foi muito inspiradora.
Prince, seu amigo, era também notoriamente livre. Há algo dele neste disco e nesta sua mudança também?
Sem dúvida, claro. Estou sempre a pensar nele, aliás, estava a fazer o disco e estava constantemente a pensar nele. E a pensar no quão feliz ele ia ficar por eu estar a dar determinados passos que ele sempre... ele dizia que adorava a minha música, mas um dia ainda a ia ouvir com um 'beat' e pronto, ela agora tem. E todos estes passos de seguir o que acredito, o não estar agarrada à ideia do mercado, mas deixar-me levar pelo que me estimula e me faz crescer criativamente, era tudo o que ele defendia e acreditava.
No meio de tantas sonoridades, porquê a ideia de integrar o fandango ribatejano?
Eu cresci no Ribatejo, costumo dizer que só não nasci em Coruche porque não havia maternidade, mas cresci lá. Aprendi a dançar fandango e no Interlúdio do disco sou mesmo eu com os meus pés e os meus professores a dançar num palco de madeira. O fandango é algo que amo.
No meio desta mudança surgiu a maternidade e tem sido muito vocal sobre o incluir a sua filha na tour, levá-la na estrada. Vários pais músicos, o Paul e Linda McCartney por exemplo, levavam os filhos e diziam que o que se perderia em rotinas ganhava-se em conhecer pessoas e culturas. Concorda?
Concordo, totalmente. E é engraçado, sinto que a minha filha, embora seja uma bebé ainda, é muito simpática, retribui todos os contactos com um sorriso, também por isso. Ela foi aos prémios Play com três semanas, já percorreu imensos quilómetros em Portugal, uns 20 voos para fora, acompanha-me sempre. Na minha equipa, que é grande e também incluía a minha mãe, ela andava sempre de colo em colo e eu acredito nisso e adorava trazê-la sempre comigo, continuar a fazê-lo, até ser possível.
Neste disco de homenagem à sua avó está a sua multiculturalidade, que também é uma realidade portuguesa, está família, luto, tradição e inovação. O que pensa que a Avó Guilhermina ia achar?
Eu acho que a minha avó ia ficar extremamente feliz. Dei o nome dela à minha casa, andava numa fase de azulejos e pus num e dei o nome à casa de Casa Guilherminha - e a minha avó ainda era viva e ficou muito feliz. E quando comecei à procura de um nome para este disco percebi que fazia mesmo sentido, da minha Casa, como a herança que a minha avó deixou em mim. Não só musicalmente mas como mulher, porque a minha avó era muito doce, mas muito forte e eu sou assim também, herdei dela. Por tudo: musicalmente; porque a minha avó é filha de mãe angolana e pai alentejano; ela também cantava fado, dançava semba, acho que ela se ia rever neste disco, musicalmente e nas histórias que eu trago. Até porque é a historia da minha família, basicamente, as minhas tias também cantam numa música, é família.
De repente são quase 20 anos de carreira; como encara o futuro nesta fase?
Estou a posicionar-me num lugar quase como se estivesse a começar e é muito estimulante. Até, por exemplo, o facto de fazer o Super Bock em Stock numa sala íntima é nessa nota. E estou a trabalhar com uma equipa nova, vamos fazer um circuito diferente também, fora de Portugal, e é tudo estimulante. Por isso, o meu olhar neste futuro é um olhar quase inocente, quase de criança, de quem está a descobrir um mundo novo. Já tive oportunidade de cantar em salas incríveis, de correr o mundo, já realizei sonhos; e agora estou disponível para descobrir outros caminhos.