
"Lux" de Rosalía editado esta sexta-feira
Foto: Direitos Reservados
O quarto álbum de Rosalía, "Lux", chega com a firmeza de um monumento e a delicadeza de uma prece. A artista catalã propõe-nos uma imersão atenta, repleta de reviravoltas e brilhantes detalhes e é precisamente na riqueza desses pormenores que o disco se revela como algo mais do que simples pop: é ritual, folia, oração e rave - tudo ao mesmo tempo.
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Em Madrid, na imponente praça do Plaza del Callao, Rosalía fez uma aparição surpresa para apresentar o novo disco. Vinha vestida de branco, com um hábito que evocava imagem religiosa; as luzes da Gran Vía apagaram, reacenderam-se, e a capa de Lux projetou-se num edifício histórico. O evento não era apenas um golpe de marketing era uma convocatória.
Duas noites depois, em Barcelona, o Museu Nacional de Arte da Catalunha transformou-se em templo. Um palco-cama, uma sala escura, mil olhos à espera. Rosalía deitou-se no centro, sem cantar, apenas escutando. As paredes projetavam versos, preces, fragmentos de canções em línguas que se misturavam como orações de um mundo sem fronteiras. Espanhol, catalão, português, francês, latim, árabe, japonês.
Idiomas, arranjos e colaborações
"Lux" canta-se, literalmente, em muitas línguas. Espanhol e catalão naturais, claro; mas também inglês, francês, alemão, latim, siciliano, português, árabe, ucraniano - e talvez mais além. Cada idioma não surge por capricho, mas torna-se textura, cor, corpo da voz de Rosalía. Ela não se limita a cantar "em várias línguas": ela faz com que a voz mude de modo, se curva, revela-se estrangeira - e, por isso mesmo, universal.
A colaboração com Carminho em "Memória" merece nota especial. Inserida no movimento IV do disco, a presença da fadista portuguesa traz uma linha de delicadeza e tradição, uma ponte atlântica entre o flamenco/urbano de Rosalía e o fado quase suspenso da Carminho. É um encontro discreto, subtil, mas significativo - o português entra na paisagem sonora como voz-eco, memória que se recusa a morrer.
Temas, humor e os "temas divertidos"
Se Lux fosse um livro, teria capítulos grandes e de facto o disco divide-se em quatro movimentos. A luz é o fio condutor: renascimento, fé, poder, queda, redenção. Mas Rosalía não se leva sempre demasiado a sério, e é aí que surgem instantes de leveza que encantam. Em "La Perla" - talvez o momento mais "divertido" do álbum - ela despe o véu da solenidade e permite-se rir durante a gravação. A letra atira setas: "emotional terrorist", "walking red flag" - a pop-saudação à libertação de amores que já não servem.
E há "Novia Robot", onde Rosalía explode dentro de si mesma uma sátira deliciosa sobre os padrões de beleza, o consumo, o amor-mercadoria. ..."Pretty for God. Only pretty for my God" canta-se num tom de ironia sublime. O humor está no contraste: fé profunda e mercado, altar e shopping.
Olhemos a "Berghain" - o clube berlinense como templo, Bjork e Yves Tumor, techno e cravo, desejo e elevação. A letra em alemão, inglês e espanhol mistura "I"ll fuck you till you love me" com arrepios vocais e orquestrações que mais parecem prelúdios de missa ou concertos barrocos. O disco transita entre o ermo e a festa, o convento e a pista de dança.
Crítica com carinho
"Lux" impõe-se pela ambição e pela coragem. Rosalía troca o hit instantâneo pela obra de escuta lenta, pelo verdadeiro desafio auditivo. Há momentos em que podemos desejar algo mais leve menos cordas, menos coro, mas esse é precisamente o ponto: ela não se quer acomodar. Quer elevar.
A orquestra, os coros, os arranjos complexos: tornam o disco denso, quase sacro. Em "Mio Cristo" ou "Jeanne" percebemos essa aspiração ao mito, à santidade, à figura que se ergue acima de si própria. Mas Rosalía mesmo aí permanece humana, vulnerável, e essa é a magia. Se somos tentados a adorá-la, ela devolve-nos a pergunta: "sou a luz do mundo ou sou nada?"
Depois há espaço para o riso e para o espelho. "La Perla" é puro humor e frescura - Rosalía ri-se, deixa o microfone cair, improvisa versos sobre ex-amores e crises de ego. "Terrorista emocional", "red flag andante", diz, e a plateia, mesmo ausente, sente o piscar de olho. "Novia Robot" é outro desses momentos em que a artista se goza a si própria: mistura samples de um tutorial de maquilhagem com coros de mosteiro, e o resultado é ao mesmo tempo pop e profano. O riso, aqui, é resistência.
E, no meio do esplendor, existem fendas para respirar: gargalhadas leves, versos que alfinetam, danças que despem o peso da solenidade. "La Rumba del Perdón" dá-nos para dançar, mesmo que o tema seja abandono ou perdão.
Rosalía não se limita ao pop: recria-se como criadora de mundos. Se aceitarmos o convite à imersão, o disco recompensa. É sofisticado, sim; denso, sim; mas também é brincalhão, sagaz e humano. Em suma: "Lux" é a luz de Rosalía. E convém aproximar-nos com olhos e braços abertos.
No movimento final, "Mio Cristo", há uma Rosalía em queda livre. Fala de fé e fama, de cansaço e renascimento. As orquestrações de Caroline Shaw e da London Symphony Orchestra dão-lhe dimensão quase cinematográfica, mas o centro continua a ser a voz - nua, trémula, às vezes quase sussurrada. Há versos que soam como despedida: "Soy luz y no lo sé", canta.
O disco é longo, denso, às vezes excessivo. Mas também é isso que o torna fascinante. Há faixas que se tornam labirintos sonoros, outras que se abrem como janelas. O humor aparece onde menos se espera, o silêncio pesa tanto quanto a nota. Rosalía parece querer provar que a pop ainda pode ser lugar de mistério. Que a beleza pode ter peso, que o riso pode rezar.
Saímos de Lux sem saber exatamente o que ouvimos. Um oratório? Um delírio? Um espelho? Talvez tudo isso. O que fica é a sensação de termos escutado alguém a reinventar o seu próprio corpo de som. E a certeza de que, nesta fase da carreira, Rosalía já não pertence à indústria, mas à arte. No Callao, na noite da projeção, alguém escreveu numa parede: "La luz se hizo carne." Talvez seja isso. "Lux" não é apenas luz. É carne, sombra e voz.

