Os efeitos devastadores da guerra na população civil da região do Donbass estão no cerne de "Abelhas cinzentas", o novo romance de Andrei Kurkov, o mais conceituado escritor ucraniano do nosso tempo.
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Não há tiranos nem mártires em "Abelhas cinzentas", o impressionante novo romance do escritor ucraniano Andrei Kurkov, que marca a sua estreia literária em Portugal. São todos, afinal, vítimas de uma guerra da qual o Mundo só se apercebeu finalmente a 24 de fevereiro deste ano, mas que, na realidade, teve o seu início no Donbass, precisamente a região onde se situa a ação do livro de Kurkov.
A tonalidade dominante neste livro é o cinzento, como se vê até pelo título. A guerra tem cor?
Tem várias cores. Uma delas é o vermelho, a cor do sangue. A outra é o verde escuro, a cor dos uniformes militares. Mas a principal tonalidade é, sem dúvida, o cinzento. A guerra cobre tudo em cinzento e deixa todos os territórios com essa cor no mapa.
O protagonista do romance, Sergeyich, fala muito no silêncio que a guerra provoca. É um som diferente de qualquer outro?
Nas três vezes que fui ao Donbass durante a guerra, entre 2015 e 2022, pude ver como os sons da guerra acabam por ser integrados pelo silêncio. Quando isso acontece, as pessoas já não reagem às explosões e o silêncio é a melhor forma que encontram de lidar com os seus efeitos. Para elas, a guerra já é uma normalidade.
Com o que está a acontecer na Ucrânia desde 24 de fevereiro, a leitura deste livro ganhou contornos diferentes?
Não. A história do livro passa-se no Donbass, mas acaba por ser universal e repete-se em qualquer época e lugar. O que há de diferente agora é que esta zona cinzenta não existe mais. Foi ocupada e destruída pelos russos. Ninguém sabe o que aconteceu aos poucos habitantes que não fugiram de lá. Foi como se tivessem sido mortos duas vezes.
Apesar de o livro decorrer sob um fundo de guerra, o estilo de narração pelo qual optou é pausado e tranquilo. Por que optou por esta abordagem improvável?
Quando comecei a escrever este livro, já tinham sido escritos mais de 200 sobre esta guerra. E tinham todos que ver com batalhas, heróis ou traidores. Não gosto de literatura radical. Tende a resvalar para a propaganda e é muito dada a simplificações. Não gosto de preto e branco. Por isso, prefiro o cinzento.
Como explica que ainda haja tão poucos romances sobre a guerra?
É complicado. Temos vários romances maus sobre a guerra. Espero que ninguém os traduza.
Porque os considera maus? São demasiado realistas?
Não, não. Quando alguém lê um romance desses, sabe que o autor não é autor, mas sim o soldado, Esse livros são um contributo para a guerra, mas não para a literatura. Ao invés, quando escrevi este livro, não procurei nenhum desígnio propagandístico. Apenas quis escrever uma história humana. Ainda assim, os livros de não-ficção, escritos na maioria por veteranos de guerra, são mais poderosos, porque são honestos, na medida em que participaram no conflito.
O que pode a literatura oferecer para a compreensão da guerra?
A ficção é subjetiva e pessoal. Diz mais sobre a pessoa que a escreveu do que sobre os eventos que descreve. Tenho um amigo que escreveu um romance sobre uma centena de soldados que sobreviveram a uma batalha violenta no início da guerra, em 2014. Falou com muitas pessoas sobre o sucedido e, pese embora todos tenham passado pelo mesmo, o relato não é coincidente. Isso deu origem a muitas discussões, com vários dos antigos soldados a acusarem-se mutuamente de terem mentido.
Sabe se há muitos escritores ucranianos que estão a pensar escrever sobre a guerra?
Os melhores que conheço não estão a escrever sobre a guerra, mas podem estar a pensar fazê-lo. Geralmente quem tem escrito são os escritores mais novos.
Há quem defenda que a literatura não processa da mesma forma os acontecimentos importantes ou traumáticos. Serão necessários vários anos até que o romance definitivo sobre a guerra seja escrito?
Concordo. Acho que os melhores livros só são escritos, no mínimo, dez anos depois de os eventos terem ocorrido. Temos que perceber primeiro o que acontece no contexto histórico.
Não receia que os méritos literários do livro sejam esquecidos ou desvalorizados atendendo ao tema tão premente que trata? Ou seja, as pessoas vão tender a focar-se mais nas questões políticas do que nas literárias?
Não tenho receio. Escrevi de uma forma tal que o leitor acaba por seguir as personagens e não os acontecimentos. O leitor vê o mundo pelos olhos de Sergeyich. Neste livro, há mais contornos humanos do que políticos.
Qual foi o seu estado de espírito ao escrever o livro?
Por vezes, estava calmo, outras vezes furioso, mas o que tentei sempre foi evitar ditar quem estava certo ou errado. As opiniões radicais expressas pelos escritores de ficção encerram muitos perigos. Só tentei que as personagens fossem entendidas.
O mundo parece ter despertado para a guerra na Ucrânia apenas a 24 de fevereiro deste ano. Foi tarde demais?
Foi tardia, claro, mas costuma ser a atitude frequente da Europa quando ocorrem acontecimentos próximos da sua área. Esta guerra foi programada devido à falta de reação do Mundo após a invasão da Crimeia. A ausência de reação à anexação deu a Putin a ideia de que poderia fazer o que quisesse nos territórios da antiga URSS.
Em que se baseia essa sua crença?
Basta ver que, já depois da anexação da Crimeia, Angela Merkel fez um acordo com Putin para a construção do gasoduto Nordstream 2. Por isso, como o comércio com a UE não foi atingido mesmo depois da agressão que fez, Putin achou que poderia continuar a fazer o que quisesse. Ele não foi castigado pelo que fez na Geórgia, em 2008.
O que acha que vai mudar agora que a Rússia anexou estes quatro territórios que pertencem à Ucrânia?
A guerra não só vai continuar, como vamos assistir a uma escalada dos combates. A Europa tem que se preparar para isso. Se a Europa decidir que a Rússia deve continuar na posse dos territórios roubados, as anexações vão continuar.
A ameaça nuclear feita por Putin deve ser levada a sério pelo resto do mundo?
Sim, deve. Acho que há um risco de 10 ou 20 por cento de ele recorrer a esse armamento. E se não houver reação, ainda vai usar mais.
Teme que a solidariedade e o apoio que a maioria do mundo está a dar à Ucrânia possam começar a enfraquecer com o tempo?
Estou admirado que, ao fim de mais de sete meses, esse apoio continue. Mas não nos esqueçamos de que este apoio não é universal. Mais de metade dos países africanos apoia a Rússia. A América Latina também. O Mundo está dividido. Há regiões que veem esta guerra como positiva, por considerarem que contrabalança o poder dos EUA. Quanto à Europa, o inverno será longo. Vamos ver se esse apoio vai continuar.
Quais as suas expectativas?
Esta é uma questão delicada para a Europa, que vai ter que decidir o que é mais importante: a sobrevivência e o lucro ou a democracia. Se optar pelos primeiros, as regras da democracia tornam-se um conto de fadas, ou seja, apenas uma declaração de boas vontades e nada mais.
Esta é uma guerra que será longa. Estamos a caminho de uma normalização da guerra? Quais os riscos que isso pode provocar?
Se a guerra não terminar até ao próximo verão, então vai continuar por vários anos.
O que é que esta agressão russa tão violenta está a fazer à identidade ucraniana?
Esta guerra também é contra a identidade ucraniana. Putin quer assimilar os territórios ocupados e para isso é preciso que os seus habitantes esqueçam a sua língua, história e identidade. O que esta guerra veio acentuar foi a importância da identidade. Por isso, as pessoas estão a defender não só o território mas também a sua identidade. Nunca estivemos tão conscientes dessa importância como agora.
A história e a cultura russas e ucranianas partilham muitos elementos comuns. O que responde aos que dizem que são basicamente muito semelhantes?
As pessoas dos outros países não sabem, mas a mentalidade ucraniana é oposta da russa. Esta é coletiva, a ucraniana é anarquista. Os russos, mesmo que descontentes, estão dispostos a defender até à última o seu czar. Já a Ucrânia nunca teve família real. Foi independente até 1654. Tradicionalmente, os ucranianos não respeitam as regras nem as leis, Estão sempre contra com os Governos. Por isso, a Rússia tentou sempre destruir a sua identidade, ao impor-lhes a língua.
Acredita que as quatro regiões anexadas ainda podem voltar para a Ucrânia?
Tenho a esperança de que possam voltar. Neste momento, as regiões estão subpovoadas. O Donbass tinha sete milhões e meio de pessoas. Hoje, não são mais de dois milhões. A maioria são refugiados, que não querem voltar, mesmo que volte a ser da Ucrânia.
Como se deve lidar com alguém como Vladimir Putin?
É impossível dialogar e negociar com alguém que está sempre a mentir. Na véspera da invasão, dizia que não ia haver guerra. A única solução é que ele desapareça e que o próximo líder seja alguém que respeite as regras internacionais e não queira fazer da Rússia um país à margem da comunidade.
Acredita numa revolução em breve na Rússia?
A revolução é impossível, mas um golpe de estado pode acontecer, devido à intriga interna no Kremlin.
Saiu de Kiev após o início da guerra e não mais voltou. De que mais sente a falta?
Ao contrário do que aconteceu com o resto da minha família, que ficou em abrigos, saí da capital no início da guerra. Kiev é a minha casa. Estive no oeste da Ucrânia durante dois meses para que fosse mais fácil deslocar-me de carro, mas espero voltar em breve.
Quando a realidade ultrapassa a ficção, que papel está reservado para o romancista?
Desde o início da guerra só tenho escrito praticamente ensaios e artigos. Não consigo desligar-me da realidade. Tentei por duas vezes retomar o meu romance que interrompi a 24 de fevereiro, mas não consegui. A realidade é mais dramática do que qualquer ficção. Há poucos dias, um amigo meu, refugiado na Alemanha, morreu. Ainda hoje falei com a sua viúva para a ajudar no transporte das cinzas para Kiev. Tudo o que está relacionado de momento com a Ucrânia é trágico e permanece nos nossos pensamentos de uma forma tal que me impede de estar a escrever histórias.
Mas essa capacidade efabuladora permanece intacta, ainda que adormecida dentro de si.
Sim, todos os dias sonho com o meu regresso à escrita.
Já era o escritor mais conhecido da Ucrânia, mas a tragédia da guerra veio fazer com que os seus livros chegassem a mais países. Trocava esse reconhecimento pela paz no seu pais?
Claro que sim. O que mais gostaria era de estar em casa, a escrever os meus romances e a consultar arquivos, encontrando-me com amigos num café numa localidade próxima. Oficialmente, sou um deslocado. É uma experiência que posso ou não usar nos meus livros no futuro, mas que está longe de ser a melhor pela qual já passei na minha vida.