Diários do artista ganham nova dimensão em documentário hedonista e elegíaco.
Corpo do artigo
Entre 24 de novembro de 1976 e 17 de fevereiro de 1987, Andy Warhol manteve uma meticulosa rotina: todas as manhãs, de segunda a sexta, relatava à colaboradora e amiga Pat Hackett os acontecimentos do dia anterior. Hackett ia dando forma de diário a este material. Parte foi vertido, em 89, dois anos após a morte de Warhol, num livro a abeirar-se do milhar de páginas. É esta a base do documentário em seis capítulos "Diário de Andy Warhol", concebido e realizado por Andrew Rossi.
O projeto assenta em três pilares. Os diários são recitados por uma voz que replica a de Warhol recorrendo a inteligência artificial - com resultados brilhantes, a mediação tecnológica a entrelaçar-se com a rotina e a fragilidade humana. Em paralelo, assiste-se a um soberbo rendilhado de imagens de arquivo de incontáveis proveniências. Pelo meio, desfila uma galeria de testemunhos contemporâneos de cúmplices, de Debbie Harry a John Waters, Jerry Hall a Lucy Sante, Julian Schnabel a Tama Janowitz.
Há uma satisfatória perversidade na raiz do documentário, que ignora as décadas em que Andy Warhol ajudou a erigir a Arte Pop e se tornou, ele próprio, uma estrela entre o mainstream e o underground. Quem aqui ganha corpo é uma personagem complexa, irremediavelmente traumatizada, no corpo e no ânimo, pela tentativa de homicídio por Valerie Solanas em 1968.
A segunda parte dos anos 70 de Warhol fazem sobressair um homem evasivo ("não há muito para dizer acerca de mim"). Que se apresentava como um acontecimento mais do que como uma pessoa. Num período em que a sua produção em série de retratos de celebridades endinheiradas era encarada (erradamente) como sinal de decadência. E em que o romance com Jed Johnson acaba de forma trágica. A década de 80 traz o holocausto da sida mas também reflexos da sua estética no graffiti e na obra de autores como Jean-Michel Basquiat e Keith Haring. "Diários de Andy Warhol" aborda tudo isto com mestria e criatividade, entre o hedonismo e um tom elegíaco.
Diários de Andy Warhol
Andrew Rossi
Netflix