Há 70 anos, chegava às salas de cinema a primeira longa-metragem de ficção de um jovem realizador semidesconhecido. Os ataques violentos que sofreu não fariam supor a glória de que hoje desfruta.
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Habituada ao folclore ruralista e à exaltação nacionalista dos filmes do Estado Novo, a crítica (ou, pelo menos, a sua ala conservadora, maioritária) não deixou passar em claro a estética arrojada de "Aniki-Bobó".
"Subversivo, "imoral", "verdadeira monstruosidade" e "infame cilada" foram alguns dos 'mimos' com que foi brindada a película que começou por chamar-se "Corações pequeninos" e "Gente miúda", em homenagem aos miúdos da Ribeira do Porto que protagonizam o filme.
Para Manoel de Oliveira, então com 34 anos, os contornos do caso não poderiam ser mais coincidentes com o verificado 11 anos antes. O não menos marcante "Douro, faina fluvial" foi pateado pela plateia durante o V Congresso da Crítica, apesar do imediato apoio que obteve de figuras como José Régio ou Adolfo Casais Monteiro.
Se a crítica desconfiou do filme, a reação do público não foi muito diferente. Apesar da intensa campanha publicitária, "Aniki- Bobó" esteve em cartaz apenas cinco semanas, período invulgarmente curto numa época em que era comum o mesmo filme ser exibido meses a fio.
A história parecia enterrada. Ou quase. Em 1954, o Cine Clube do Porto, espaço de resistência e liberdade na Invicta, incluiu o filme numa mostra dedicada ao cinema português em São Paulo, no Brasil, acabando por dar origem à sua reabilitação e, mais tarde, à consagração plena.
O prémio obtido em Cannes, no II Encontro de Cinema para a Juventude, 20 anos mais tarde, consolidou o prestígio de uma película que teve que esperar mais de três décadas para ser exibida na televisão portuguesa.
No ensaio "Aniki-Bobó", publicado pela Assírio & Alvim, Manuel António Pina recorda que, apesar de o tempo ter provado quão injustas foram as críticas, nada apagou o lastro de polémica do filme, adaptação de um conto de Rodrigues de Freitas.
A ousadia de ter fugido aos cânones pagá-la-ia o realizador ao longo dos anos seguintes. Afinal, Oliveira "teve que esperar duas décadas para, após muitos projetos rejeitados e gorados, ter oportunidade de rodar outra longa-metragem e 30 anos para poder fazer um novo filme".
Nada que tenha impedido a entronização de Manoel de Oliveira como cineasta fundamental do nosso tempo.