Mikey Madison, de 26 anos, é a imprevista melhor atriz. Adrien Brody é o melhor ator outra vez. Brasil vence o seu primeiro Oscar (“Ainda estou aqui”), mas a suprema Fernandas Torres perdeu. Onde pára a coragem política de Hollywood? Aqui e só: na verdade documental de "No other land".
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Foi um triunfo absolutista e tão dominativo que quase parece opressor: “Anora”, a subversiva farsa sexual anti-Cinderela que faz “Pretty woman” parecer um filme infantil, impôs-se nos Oscars 2025 como uma bomba-relógio: limpou cinco prémios (filme, realizador, atriz, argumento e montagem) e deu ao seu autor, Sean Baker, um recorde irremovível desde 1954, quando Walt Disney também abraçou quatro Oscars - mas com quatro filmes diferentes.
O filme indie que funde comédia negra com aço e drama custou apenas seis milhões de dólares e é, ademais, um petardo que estilhaçou na cara de Demi Moore: a favorita para melhor atriz (“A substância”, uma imparável dissecação do envelhecimento feminino e dos seus ultrajants ditames sociais, que deixa os espectadores a rugir sorrisos de horror) ficou prostrada com a vitória de Mikey Madison, a prostituta estridente que se apaixona e casa com o filho estulto de um oligarca russo, defendendo com os dentes e as unhas de gel o direito à utopia do seu coração.
Sardónico, retorcido, pleno de brio cinético, “Anora” não é, no entanto, um filme vital, nem como comédia, nem como drama, nem como híbrido é primacial - e deterá também o recorde dos filmes menos vistos pelo público no historial dos Oscars.
A primeira vez do Brasil
Absolutamente substancial, e o melhor dos dez filmes a concurso - cumpre-se todo nos três planos primordiais que quer alcançar: o pessoal, o político e o artístico -, é “Ainda estou aqui”, o milagre dramático de Walter Salles em que Fernanda Torres reencarna no corpo de Eunice Paiva, a mulher real que não deixou vergar nem sequer o sorriso quando a ditadura militar brasileira lhe fez desaparecer o futuro e o marido.
Salles, que recolheu a estatueta de melhor filme estrangeiro 27 anos depois de ter sido nomeado pela primeira vez (“Central do Brasil”), acariciou o primeiro Oscar de sempre para o seu país e deu o prémio às "três mulheres extraordinárias" de “Ainda estou aqui”: Eunice, Fernanda Torres e a mãe desta, Fernanda Montenegro, a colossal estrela da sua primeira nomeação. Apesar dessa imensa alegria, a derrota de Fernanda, que o “The New York Times” advogava para vencer, embaçou o instante histórico.
Faltou coragem política
Coxa, tépida, com maus números musicais - três canções para 007 porquê?! - e sem um pingo de coragem política, a cerimónia destes Oscars forrou-se de autoindulgência e ignorou o alarme do mundo real da América de Trump, submersa num golpe de estado que corre em câmara lenta à frente de toda a gente.
O anfitrião Conan O’Brien ainda alfinetou o ar - “acho que os americanos estão animados por verem alguém finalmente enfrentar um russo poderoso”, disse, referindo-se à falsa casta e incauta Anora que faz peito aos russos -, a atriz Daryl Hannah ainda depôs em palco um alto “glória à Ucrânia!” antes de apresentar um prémio, mas foi pouco, foi poucochinho.
O instante decisivo de “No other land”
Não fosse a honrosa valentia da verdade do grupo de cineastas israelitas e palestinianos do melhor documentário “No other land” e a miséria liberal de Hollywood seria obscena.
Foi esse o momento da noite, com o cineasta israelita Yuval Abraham a perguntar na cara de todos, virado para o seu “irmão” árabe Basel Adra, codiretor como ele: “Mas por que razão vocês não conseguem ver que estamos interligados, que o meu povo só pode estar realmente seguro se o povo da Palestina estiver realmente livre e realmente seguro?”.
O instante decisivo sibilou no pomposo veludo do Dolby Theatre, em Los Angeles, e teve ovação: “Apelamos ao mundo que tome medidas sérias e acabe com a limpeza étnica dos palestinianos”, disse diretamente Basel Adra. “Há uma solução política de direitos para ambos, sem supremacia étnica”, disse ainda Yuval Abraham e com inaudita coragem concluiu que o atual governo de Donald Trump “está a ajudar a bloquear esse caminho” de paz.
A lição foi exemplar e “No other land”, filme que revela os abusos e crimes de Israel na expulsão e morte de palestinianos em Masafer Yatta, na Cisjordânia ocupada, com provas em vídeo que vão de 2019 a 2023, tem toda a autoridade moral para falar: juntamente com a documentação da destruição material e deslocamento forçado, é um registo da guerra psicológica e carnívora de um exército e de um país para demolir a moral, suprimir a energia, cimentar poços de água, partir perfidamente a vontade e a espinha e abater palestinianos inocentes sob o jugo de um argumento bíblico unilateral.
"Não é tarde para a vida, para os vivos. Não há outro caminho”, resumiu Yuval Abraham. Muito sintomático do pleno poder da sua verdade: “No other land” não foi ainda distribuído nos EUA.
“Emília Perez” dinamitado
As 13 nomeações do narco-musical “Emília Perez”, um extasiante delírio do cineasta francês Jacques Audiard, foram reduzidas a dois prémios: melhor canção para “El mal” e melhor atriz secundária para Zoe Saldaña, nomeada pela primeira vez. Zoe chorou assim que se levantou e só parou depois de sair do palco, sublinhando que é uma orgulhosa filha de imigrantes honrados e com sonhos. Mereceria mais prémios, mas o filme da Netflix boicotou-se a si mesmo quando cancelou a sua estrela trans Karla Sofia Gáscon devido a tweets racistas anosos e descontextualizados.
Encolhido num zero ficou “A complete unknown” (oito nomeações), biografia do jovem Bob Dylan realizada por James Mangold. O fogo inteiro do filme é Timothée Chalamet, ator que mergulha com método quiescente no mistério vulcânico que é o lendário criador de “The times they are a-changing” e emerge como a maior sumidade entre os atores da melhor safra do ano. Chalamet, que canta todas as canções com a imperturbabilidade dos astros, perdeu mas continua condenado à insondável grandeza.
O recorde de Adrien Brody
Chalamet foi ultrapassado por Adrien Brody e pelo descomunal filme-instalação “O brutalista” (dura 3h35m, mais um intervalo mandatório de um quarto de hora). O drama pós-Holocausto de Brady Corbet é um retrato provocativo do som e da fúria de um homem, um silencioso arquiteto húngaro judeu, e da sua incessante busca pelo direito ao sonho americano. Ganhou três prémios, incluindo a banda sonora para Daniel Blumberg e a melhor fotografia para Lol Crawley, dando o segundo Oscar, 22 anos depois de “O pianista”, a Brody.
O ator de 51 anos, que mandou a orquestra calar-se a meio dos seus agradecimentos, quebrou o recorde do discurso mais longo da história dos Oscars: cinco minutos e 40 segundos, superando Greer Garson (cinco minutos e 30 segundos) no filme de 1943 “A família Miniver”.
"Estou aqui mais uma vez para representar os traumas persistentes e as repercussões da guerra e da opressão sistemática, do antissemitismo, do racismo e da alteridade", disse o elegante Brody. "Rezo por um mundo mais saudável, mais feliz e mais inclusivo, e acredito que se o passado pode ensinar-nos algo, é o alerta para nunca deixarmos o ódio passar despercebido".
Incontestado é o Oscar de melhor ator secundário para Kieran Culkin (“A verdadeira dor”), um papa-prémios sem par nesta temporada. Ele é o espetacular coração e a alma excêntrica do filme de Jesse Eisenberg sobre dois primos que são siameses opostos numa viagem pela Polónia em memória da sua amada avó judaica.
O thriller religioso e os blockbusters
Circunscrito ao Oscar único de argumento adaptado, “Conclave” (8 nomeações), de Edward Berger, que nos leva à privança da secretiva reunião do Colégio de Cardeais em plena votação para um novo Papa, merecia sair mais reconhecido. Sendo um thriller político sobre religião, isto, sobre poder e traição, é uma obra de rigorosa geometria e beleza, profundamente intelectual, contingentemente divertido. Os seus torvelinhos agigantam-se sem cessar até à revelação que está contida no mais imprevisto e feliz final desta temporada cinematográfica.
Do lado dos blockbusters, o conto de fadas pop kitsch "Wicked", ummusical de Jon M. Chu que quer ser o preâmbulo de "O feiticeiro de Oz", tinha dez nomeações, ficou com dois Oscars: design de produção e guarda-roupa, distinguindo Paul Tazewell, o primeiro homem negro a conquistar a estatueta da categoria dos figurinos. E "Duna: parte dois", o arenoso épico de ficção científica de Denis Villeneuve, ganhou as categorias de melhor som e efeitos especiais, tendo já em preparação um "Dune: parte três”.
A irradiar melancolia e doçura, "Flow”, de Gints Zilbalodis, venceu o Oscar da melhor longa-metragem de animação, o primeiro para um filme letão, superando gigantes como "Divertida-ente 2", "Robot selvagem" e "Wallace & Gromit: a vingança das aves". É uma metáfora climática animal de 83 minutos onde não há personagens humanas, nenhum diálogo, só guinchos, urros e latidos, de onde se sai encantado como que sob o poder dos feitiços emocionais.
Com o devido respeito pelos dessemelhantes, responda-se já com um firme "talvez" à pergunta desnecessária: terão sido estes os Oscars mais chochos de sempre?