Por muito que o fim do mês de agosto carregue sempre um travo de melancolia, "algo existe num dia de verão", como escreveu a poetisa norte-americana Emily Dickinson, "que o êxtase transcende". Da poesia às canções, nada é tão duradouro, afinal, como um refulgente dia de estio.
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Tantos anos depois, os poemas de Emily Dickinson ainda ressoam junto de muitos leitores que teimam em não ver nos livros meros escapes a uma realidade pouco solícita em fazer-nos a(s) vontade(s).
Encontramos na sua obra fecundos exemplos de comunhão, desassossego e plenitude, mas em poucos poemas sintetizou tão bem esses estados de alma como em "Algo existe":
"Algo existe num dia de verão,
No lento apagar de suas chamas,
Que me impele a ser solene.
Algo, num meio-dia de verão,
Uma fundura - um azul - uma fragrância,
Que o êxtase transcende.
Há, também, numa noite de verão,
Algo tão brilhante e arrebatador
Que só para ver aplaudo -
E escondo minha face inquisidora
Receando que um encanto assim tão trémulo
E subtil, de mim se escape"
Em 1968, o céu não era limite para os Doors. No início do ano anterior, o quarteto californiano liderado por Jim Morrison irrompeu com estrondo pela cena musical, apresentando um disco homónimo carregado de uma energia e sensibilidade assaz rara. Menos de um ano e meio depois, com outro disco de permeio lançado ("Strange days"), os Doors lançaram "Waiting for the sun", disco mais luminoso do que os seus antecessores no qual encontramos a dada altura uma pequena pérola, oculta sob outras preciosidades não menos raras. Em "Summer's almost gone", Morrison entoa um canto pungente em que as incertezas do presente encontram eco num porvir não menos perturbador.
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Não mais os Vampire Weekend lograram repetir a frescura do seu disco inaugural, habitado por canções tão frescas que nos dão vontade imediata de mergulhar no mar mais próximo. "Mansard roof" é um desses temas que traz o verão dentro de si.
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É altamente discutível que os chamados filmes de verão possam ser considerados um género, como algumas plataformas de subscrição terminadas em "ix" têm insistido em fazer. Se concedermos esse benefício da dúvida, "Paternidade" merece uma menção. Estreado já este ano, o filme mostra-nos um convincente Kevin Hart no papel de um viúvo decidido a criar a sua jovem filha contra todas as adversidades. Não se espere propriamente a salvação do cinema nestes 110 minutos de película, mas, pelo menos, a honestidade e competência com que é contada esta história baseada em episódios verídicos faz-nos chegar ao fim com a convicção de não ter dado por mal empregue o tempo, como diriam os repórteres de antanho.
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O que seria do verão sem os 'guilty pleasures'? Sejam canções orelhudas que trauteamos contra a nossa própria vontade ou filmes cujo final topamos ao fim de cinco minutos, a escolha é abundante e não exclui, obviamente, as séries televisivas. Neste particular, não há como negar o irresistível apelo kitsch de "Marés Vivas" ("Baywatch", no original). Vinte anos depois do final, a série continua a povoar o imaginário de milhões, seja pela figura pneumática de Pamela Anderson ou pelo penteado aerodinâmico de David Hasselhoff.
Visionar a totalidade das temporadas talvez seja um exercício duro que nem os seguidores de Masoch o recomendariam, mas rever alguns episódios pode ser uma boa forma de concluirmos que a proximidade do final do verão talvez não seja assim tão dramática.