
A obra reúne episódios que atravessam a sua vida, desde a infância até à consagração em Hollywood
Foto: Anthony Hopkins/Instagram
O ator britânico Anthony Hopkins lança em Portugal, na próxima semana, um livro de memórias em que revisita oito décadas de vida, da infância no País de Gales à luta contra o alcoolismo e à procura de serenidade.
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Lançado pela Simon & Schuster no final de outubro, o livro de memórias "Correu bem, miúdo" foi traduzido para português por Vasco Gato e será publicado pela chancela Lua de Papel, na próxima terça-feira.
Trata-se de uma narrativa introspetiva, em que o ator de "O Silêncio dos inocentes" reflete sobre as experiências que moldaram a sua identidade pessoal e artística.
A obra reúne episódios que atravessam a sua vida, desde a infância em Port Talbot - a cidade industrial onde nasceu, em 1937 - até à consagração em Hollywood, incluindo memórias da relação com o pai, o período escolar, os primeiros anos no teatro britânico e os desafios pessoais que enfrentou ao longo do tempo.
O título "We did OK, kid" (no original) é inspirado numa fotografia do autor em criança com o pai, Richard Hopkins, e serve como ponto de partida para uma reflexão sobre o legado e o sentido de realização.
Logo na introdução, Anthony Hopkins recorda como numa manhã do ano de 1941, em que estavam na praia, um amigo do pai, de nome Cliff, lhe ofereceu uma pastilha para a tosse - nesses anos de guerra, os doces eram raros -, e ele, "trapalhão", deixou-a cair na areia e desatou a chorar.
Teve direito a um segundo rebuçado, o pai debruçou-se para o reconfortar e disse "chega de lágrimas", e Cliff tirou a fotografia, que ilustra a primeira página do livro.
"É uma das minhas lembranças mais antigas. Tinha três anos. Hoje, com oitenta e sete, olho de vez em quando para essa fotografia e sinto-me levado a dizer ao rapaz atarantado: "Correu bem, miúdo"", escreve o autor.
Anthony Hopkins passou a infância a sentir-se "fora do sítio", num ambiente de homens que não exteriorizavam a vulnerabilidade, com o pai, que era padeiro, e com a mãe, que era dona de casa.
O ator confessa que, como outras crianças, se sentia "ansioso e desnorteado", mas que essa "sensação de estar perdido" o acompanhou ao longo dos seus muitos anos de vida.
Aos 11 anos, os pais inscreveram-no num colégio interno, com esperança de que melhorasse, porque viam com aflição o filho desajeitado e mau aluno, a quem um professor da escola anterior deu a alcunha de "cabeça oca" e os miúdos da rua chamavam "cabeça de elefante".
Mas foi nesse período escolar, depois de anos a opor-se aos professores "com uma insolência feroz", que sentiu o impacto do cinema, quando viu o filme "Hamlet" (1948), de Laurence Olivier, que o levou a seguir uma carreira artística.
Ao longo de cerca de 300 páginas, o ator descreve o seu percurso académico e profissional que o levou da Royal Academy of Dramatic Art (RADA), em Londres, ao reconhecimento internacional, e partilha relatos da convivência com nomes centrais do teatro e do cinema britânicos.
A narrativa inclui ainda referências à colaboração com Laurence Olivier e à experiência no Royal National Theatre, que considera decisiva na consolidação da sua disciplina e método de trabalho.
Mas a obra "Correu bem, miúdo" dedica vários capítulos à sua vida pessoal para lá da infância, nomeadamente o período de dependência alcoólica e o processo de recuperação iniciado na década de 1970, que o autor descreve como um renascimento interior.
Anthony Hopkins relata como começou a beber a sério na década de 1960 e como esse hábito se tornou quase rotineiro, porque essa era a única forma de se sentir normal.
Foi no dia 29 de dezembro de 1975, depois de ter passado uma noite a conduzir o carro, sem se lembrar de nada, e de ganhar a consciência de que podia ter matado alguém, que despertou para a sobriedade, que mantém há quase meio século.
Hopkins fala também do afastamento familiar e do impacto que as escolhas pessoais, maioritariamente motivadas pelo alcoolismo, tiveram na sua vida privada.
Embora contenha referências pontuais à rodagem de filmes emblemáticos - como "O silêncio dos inocentes", "Os despojos do dia" ou "O pai" -, a obra privilegia uma perspetiva mais ampla sobre a passagem do tempo, o envelhecimento e a criação artística.
O autor detém-se ainda em reflexões sobre o sentido da arte e da espiritualidade, a natureza da memória e o valor da simplicidade quotidiana, em particular, a partir dos anos 2000, e fala sobre a relação tardia com o tempo, a solidão e a mortalidade.
É nesse período que se começa também a dedicar mais à pintura e à composição musical, e que ganha o segundo Óscar de Melhor Ator (o primeiro foi com "O silêncio dos inocentes"), por "O pai" (2021), que dedica a todos os que "lutam para fazer as pazes consigo mesmos".
A terminar o livro, o autor regressa aos tempos de escola, para recordar que foi a leitura do poema "O vento de oeste", de John Masefield, que um professor o obrigou a ler em voz alta para a turma, que fez despertar "uma outra vida enterrada" dentro dele. No final da aula, o professor ofereceu-lhe o livro e isso foi uma "revelação".
Desde então, alimenta uma paixão pela leitura, pela poesia - "os poemas têm muito má fama, segundo me tem constado, mas eu gosto" -, pela pintura e pela música, que "também teve um papel de relevo" na sua vida.
"O único conselho que posso oferecer é: ouçam música. Qualquer música. E leiam. Leiam qualquer coisa. Livros. Poemas. Seja o que for", escreve Hopkins.
Por isso escolheu incluir no livro - além de um vasto conjunto de fotografias (da vida pessoal e artística) -, um último capítulo que compila uma série de poemas, de alguns dos seus autores favoritos, como W.H. Auden, C.P. Cavafy, John Masefield, Gerard Manley Hopkins, Henry Wadsworth Longfellow, William Shakespeare, W.B. Yeats, T.S. Eliot, Ernest Dowson, Edward Thomas, Thomas Gray e Christina Rossetti.
Anthony Hopkins vive hoje mais voltado para o plano espiritual e filosófico, porque, como disse numa entrevista recente, após receber o Óscar, "a vida é breve, a arte é um presente".
