Há nova edição da antologia de textos literários sobre a Invicta. Arnaldo Saraiva "surpreendido" com a adesão.
Corpo do artigo
Do burguês ao operário, do tradicional ao cosmopolita, são "vários Portos no Porto" que encontramos na mais emblemática antologia de textos literários em prosa sobre a cidade que Agustina Bessa-Luís afirmou certa vez não ser "um lugar, mas um sentimento".
Vinte e três anos depois da publicação original, chega agora às livrarias a nova edição - a sexta, com chancela da Contraponto - de "O sentimento do Porto", volume coordenado pelo catedrático e ensaísta Arnaldo Saraiva que contém mais de 50 imagens representativas da velha urbe, captadas por Luís Ferreira Alves, fotógrafo falecido no ano passado.
Através de textos de autores como Camilo Castelo Branco, Raul Brandão ou Vasco Graça Moura, chegam-nos relatos detalhados do seu casario compacto e das inconfundíveis escarpas, emolduradas por um rio não menos marcante. Mas também sobejam ecos de humanidade no pequeno comércio ambulante de outrora, com "as peixeiras de xaile e lenço, embiocando crânios levemente descobertos no ato de arrear as canastras tapadas com um oleado cor de areia molhada" ou as "hortaliceiras bem-dispostas, tagarelas, de aventais álacres com bolsos-alçapões", como escreveu António Rebordão Navarro.
porto do lado poético
Cidade fortemente literária, o Porto "está mais do lado poético, embora ainda não tenha tido o seu Cesário Verde", diz Arnaldo Saraiva, parafraseando Eugénio de Andrade, que, porém, achava ter sido em prosa que se escreveram as melhores páginas sobre a Cidade Invicta.
Regressar a textos tão essenciais foi "um prazer", confessa o coordenador, "surpreendido" com a "demanda completamente impensada" que o livro suscitou assim que saiu a primeira edição, inicialmente destinada a participantes de um congresso médico. "E já contaria com mais edições se não tivesse havido acidentes editoriais como o encerramento da Campo das Letras", a editora inicial.
Entre as primeiras edições e a atual, poucas foram as alterações sofridas, o que significa que o arco temporal representado se fecha no século XX. Se tivesse oportunidade de incluir criações mais recentes, Arnaldo Saraiva não teria grandes dúvidas: "Porto, modo de dizer", escrito por Manuel António Pina em 2001, e "Porto: As histórias que faltavam", obra de Germano Silva lançada em 2021.
"Os contrastes urbanos e sociais" que caracterizam o Porto poderiam colocar em causa a sua identidade. Afinal, não faltam diferenças entre a Ramada Alta e a Baixa ribeirinha, a Foz nova e a velha ou bairros como o das Antas ou o de Guerra Junqueiro. Só que, defende Arnaldo Saraiva, essas idiossincrasias "não parecem enfraquecer o forte sentimento e até orgulho comum de quem nasceu ou vive no Porto, de quem tem um sotaque diferenciado que pode ser da fala mas é sobretudo da atitude perante os outros e perante a vida".
Uma edição abreviada de "O sentimento do Porto" já está prevista, revela o coordenador, que ainda não perdeu a esperança de fazer outra "mais alongada", em que se falasse "de rituais, de invenções culinárias (tripas, bacalhau à Gomes de Sá, francesinha...) ou de personalidades populares".
Lendo a representação da cidade feita pelos maiores artesãos da língua e a sua presença na toponímia local, dir-se-ia que o Porto trata bem os seus escritores. A realidade é diferente, aponta Saraiva, que exemplifica com o estado de abandono a que foram votadas as casas de Almeida Garrett ou António Nobre e, mais recentemente, de Rebordão Navarro. "Dói ver o que se tem passado", lamenta. Mais do que "honrar a memória dos bons produtores de literatura", prossegue, "impõem-se ações permanentes que estimulem a sua leitura e o conhecimento do seu legado literário e humano".