Cineasta francês fala de "Traições", já em exibição nas salas.
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Baseado num livro autobiográfico de Philip Roth, "Traições", já nas salas de cinema, centra-se num escritor americano que, no seu apartamento de Londres, recebe a visita da amante e recorda outras mulheres da sua vida, reais ou fruto da imaginação. O filme é uma realização de Arnaud Desplechin, tem Denis Podalydès no papel de Philip e Léa Seydoux, Emmanuelle Devos e Anouk Grinberg nas mulheres da sua vida. O filme fez parte da seleção da primeira edição da secção Cannes Premiere, do festival do ano passado, realizado a meio gás devido à pandemia. Foi então que se desenrolou a nossa conversa com Desplechin, realizador de filmes como "Um conto de Natal", "Jimmy P: Realidade e sonho", "Três recordações da minha juventude" ou "Roubaix, misericórdia".
A receção da sala em Cannes foi magnífica. Mas não ficou triste por não ter levado o filme à competição?
Foi muito tocante, e marcado por uma grande bizarria, porque é um filme sobre um homem que escuta as mulheres, nós fizemos o filme para a Léa, para a Emma, para a Anouk, e só estava eu e o Denis. Foi muito estranho, mas a sala foi muito generosa. Demorou apenas um segundo a pensar se estava triste ou não. E não. Estou contente.
O filme foi rodado em plena pandemia.
Quase tenho vergonha de o dizer, mas a covid foi a oportunidade da minha vida. É horrível de se dizer, mas é verdade. Estava a encenar "Angels in America" na Comédie Française e tivemos de parar, só fizemos três representações. E disse para mim mesmo que era a possibilidade de fazer um filme rápido. Fui aos caixotes e tirei para fora o guião de "Traições". Filmei logo de seguida. Todos com máscaras, ainda não havia vacinas. Mas foi muito fácil de fazer.
Já tinha então escrito o guião do filme.
Tinha filmado um bónus para o DVD do "Reis e rainhas", que era a cena do epílogo, onde eu dava a réplica à Emmanuelle Devos, que dizia o texto do fim. O Philip Roth viu esse bónus e decidiu telefonar-me. Descobriu os meus contactos e falei ao telefone com ele, uma vez na vida, numa noite.
Como é que decorreu esse encontro telefónico?
Eu sou muito mau ao telefone e estava com os "sir" para aqui e para ali e ele disse-me logo para esquecer o "sir". E eu continuava. Propôs-me fazer este filme. Mas de uma forma simples, exatamente como o bónus do DVD. Ele achava a Emmanuelle Devos maravilhosa. Mas eu não percebi o que ele queria dizer. Tentei várias vezes mas falhei sempre. Mas finalmente percebi, ele tinha razão.
Infelizmente, Philip Roth já não pôde assistir à adaptação do seu livro.
O mestre está morto e só agora fui capaz de compreender o que ele me tinha querido dizer. Era preciso fazer o filme nesta economia e nesta simplicidade. São retratos de mulheres, que são infelizes, que não encontraram o seu lugar mas que, no final, descobrem o sentimento de pertença. É isso que o filme conta. Era preciso ser o mais delicado e o mais belo possível, na intimidade do tema do filme.
Philip Roth é um escritor de renome mundial. Foi fácil obter os direitos de adaptação do livro?
Para os agentes americanos, este não é um grande livro de Philip Roth. Parece que ninguém o comprou. Sem ser eu, ninguém o quis adaptar. Nenhum realizador de Hollywood o quis. Não tínhamos concorrência. Fomos falar com eles, foram muito pragmáticos e como não tínhamos dinheiro para lhes pagar e queríamos ficar nesta economia muito modesta, demos-lhes uma parte. Entraram como coprodutores. Foi assim que as coisas se desenrolaram, sem ter de passar pelo star system.
Philip Roth, que se torna personagem do filme, é considerado um dos maiores romancistas judeus de língua inglesa. Esse facto também o interessou?
É um tema que me apaixona, na vida e no cinema. O facto de haver judeus e gentios e que se possam falar. Que se possam amar e separar, que se possam entender bem, ou não, que se possam compreender, ou não. É este diálogo possível, difícil e complicado, entre o judaísmo e o cristianismo, que já está em todo o lado nos meus filmes anteriores. É um dos grandes temas da minha vida, é uma das minhas formas de viver. E eu sou católico. Católico ateu, como Joyce.
A estrutura do filme fez pensar em "Providence", a obra-prima de Alain Resnais. Há um criador e não sabemos bem se o que vemos é realidade ou uma criação.
É um dos meus Resnais preferidos mas, se bem me lembro, a personagem do John Gielgud é um pouco o demiurgo do filme. No meu filme, a personagem do romancista desaparece para dar lugar à personagem feminina. Há uma escuta do autor, um respeito pela voz e pela singularidade de cada uma das suas mulheres que julgo infinitamente precioso. O Denis faz isso de uma forma muito elegante, mas quando a Léa chegou, tomou conta do filme. Do Denis, de mim, do diretor de fotografia. Passou a ser o filme dela. É isso que acho maravilhoso.
Há um lado teatral no filme. Ou melhor, o artifício do cinema não é escondido, está lá, à vista de todos.
Isso deu-me imenso prazer, mas com uma condição. E partilhei isso com o produtor. Que fosse sensual. Não queria que fosse um filme muito mental ou muito cerebral. Queria que fosse um filme de carne. Que a mulher fosse uma mulher que chora e que ri. Artifício, sim, mas filmado em cenário natural. Queria um filme-carne, não um filme-cérebro.
Há também um lado melancólico nesta história dos amores de um homem.
É como aquelas histórias de amor que fracassaram mas que dez anos depois percebemos ser um dos melhores momentos da nossa vida, quando reencontramos essa pessoa, num café, durante dez minutos, e não sabemos o que havemos de dizer.
Agora que estou à sua frente não posso deixar de reparar numa certa semelhança física entre o Arnaud e o Denis Podalydès. É apenas coincidência?
Há uma frase muito divertida do Mathieu Amalric, quando entrou no "Vénus de vison" do Polanski e deu uma entrevista absolutamente escandalosa a uma revista, em que dizia que ser ator era muito fácil, bastava imitar o realizador. Ficam sempre contentes.
Foi então o Dens Podalydès que o imitou?
Gosto muito de alimentar os atores. O Denis não é judeu. Todos os dias contava-lhe uma história divertida do Claude Lanzmann, de quem era muito amigo. Para o judaizar. Será que é o Denis que me imita a mim, ou o Denis que me imita a mim a imitar o Lanzmann? Foi talvez isso que deu essa similitude, essa fraternidade que bem notou.