Tiago Guedes já tinha dado o alerta: esta edição do Festival Dias da Dança ia ter parte do seu centro nevrálgico a decorrer no CAMPUS Paulo Cunha e Silva, inaugurado em junho, onde decorrem até 1 de maio várias formações práticas e teóricas. Mas uma coisa é saber, outra é vivenciá-la.
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Domingo de manhã, o silêncio interrompido pelo repicar dos sinos da igreja, na Travessa dos Campos transporta-nos para um outro lugar, fazendo-nos crer que não estamos no centro da cidade do Porto. Dentro de um dos estúdios - há vários no espaço - a viagem é outra. A atmosfera é pesada e húmida e a comandar perto de 20 participantes está Piny, aliás Anaísa Lopes, que num jogo de partilha propõe a quem está dentro do linóleo percorrer o processo criação de " .G Rito", obra que sobe ao palco do Palácio do Bolhão nas próximas quinta e sexta, no âmbito do DDD.
A linguagem é multirreferencial, tal como o percurso da coreógrafa: formada em arquitetura, dança e cenografia, começou na dança oriental, mudou o foco para a cultura hip-hop formando a crew Butterliesoulfow, e rumando em direção à Companhia Orchidaceae Urban Tribal, onde abundam os estilos breakdance, house, waacking, vogue e tribal fusion belly dance.
A música que soa no estúdio é flamenco, primeiro uma reinterpretação de "Entre dos aguas", para logo soar "Buleria" de Rosalía.
"Yo soy la niña de fuego", entoa a intérprete catalã, e também a coreógrafa lisboeta parece ter essa energia. Capaz de ter pés de tango, braços de mata leão e um core capaz de domar qualquer um que lhe passe pelas mãos. Há um certo desconforto no confronto, um atar e desatar de nós, um aprender a sagacidade, a oportunidade. O contágio e a escuta do corpo do outro.
O trabalho das intenções é completamente absorvido pelos participantes. Na dança mostramos quem somos, mesmo que não o queiramos. E como explica Piny, cada cidade tem um corpo, um gesto. E exemplifica: "Os meus amigos de grandes cidades, especialmente os da América Latina, têm um corpo sempre alerta e reagem de uma forma muito diferente se eu lhes tocar nas costas, do que uma pessoa do campo, com um corpo relaxado. Quando dobram uma esquina aprenderam a nunca a dobrar fechada, mas sempre ao largo".
Outra das referências que denuncia o intérprete é a idade, explica a uma das participantes. "Tu és novinha, então tens essa jovialidade e essa inocência sem maldade no corpo, e isso é muito bonito", explica.
O único participante masculino conta que se impõe "um modelo social de liderança e aqui sinto-me a lutar de igual para igual". Dosear a delicadeza é essencial, também na dança.
É dentro do estúdio que Piny se assume mais feliz, "porque estão diluídas as fronteiras com o público". "Nunca fez muito sentido para mim estar dois anos a preparar um trabalho, estar quatro meses em trabalho efetivo e depois resolver tudo em três horas. É importante ter estas conversas, fazer workshops, estar próximo do público", conta ao JN.
Rebeca Mateus, participante que veio de Lisboa para fazer a formação com Piny, é um dos exemplos disso mesmo. "Sou aluna do coletivo Orchidaceae e assisti ao início do processo criativo delas, então queria muito vir fazer este workshop ao Porto para saber como tinha evoluído, até porque a Piny está com uma grande carreira internacional e agora dá poucas aulas", diz. No final está muito feliz.
Piny explica que o processo de ".G Rito" tem "ancestralidade, globalização, apropriação, herança cultural, numa era da internet em que quase é mais fácil eu saber algo do outro lado do Mundo do que algo local, se não for exposta a este". Uma estreia ansiada.
Quanto aos workshops, ainda há muita formação para se fazer na segunda semana do Festival DDD. "Chama a pélvis" de Cacá Otto Reuss é uma aula aberta todas as manhãs desta semana. Há também aulas diárias em "Roller coaster" de Daniela Cruz. Para profissionais e estudantes de artes performativas o CAMPUS oferece esta semana workshops de Marlyn Ortiz, Meg Stuart e Gustavo Ciríaco. No próximo fim de semana há workshops de vogue com Typhoon Prodigy, Christopher Saint Laurent, Vinii Revlon e Yanou Ninja, abertos a quem queira participar, para todos os níveis.