Após a jornada de trabalho em Jerusalém, que os cananeus baptizaram de Orshalem (Cidade da Paz) num crisma tornado cínico pela História, uma família palestiniana volve a casa.
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Em Abadees, vila não muito longe das muralhas que assinalam a explosiva encruzilhada das religiões do Livro. Vista de relance, é um amontoado de casas sem arquitectura e de salubridade duvidosa, cubículos debruando o lamaçal a que chamam ruas por conveniência. Mas, apesar de miserável e horrível, é o seu lar. E, no contexto do Médio Oriente, o seu frágil pedaço de paz. Provisória.
A loucura dogmática, a Segunda Intifada e a estratégia securitária de Israel converteram o trajecto, afinal tão curto e breve, num pequeno calvário. Em 1999, chegaram máquinas e placas de betão para vedar a única estrada que liga Jerusalém, onde os palestinianos sobrevivem no expediente mercantil, e Abadees, em que descansam do garimpo. Quando a maquinaria partiu, deixou uma parede, alta de três metros, velada por soldados imberbes e desconfiados, plantada entre dois muros. Do lado direito, o de uma congregação monástica cristã, demasiado grande para saltar; do esquerdo, o limiar de uma vivenda judaica, mas com dez palmos apenas. A necessidade tornou-o passagem entre dois mundos.
Após subir a escadaria de calhaus, o fluxo palestiniano desliza sobre o muro judaico e desce já do lado cisjordano. Na circunstância, o pai trepa primeiro e acolhe nos braços as três crianças, demasiado pequenas para escaladas. Por fim, a mulher, cujo vestido até aos tornozelos lhe nega amplitude de movimentos. O marido acorre em seu auxílio, e a custo fá-la subir e descer o muro. Os soldados fumam. E riem.
Já na Cisjordânia, o casal analisa as roupas, verifica a extensão das manchas, coladas ao têxtil, da tinta branca com que o judeu da vivenda pinta diariamente o seu muro convertido em ponte. Para os palestinianos de Abadees, é impossível galgá-lo sem marcas - na vila, não há ninguém incólume. Por isso ocorre, a quem os vê assim, marcados pela tinta que lhes assinala a proveniência e a condição, a cruel ironia desse anátema: se os atavios tivessem listas, a impressão do muro israelita podia ser a de uma estrela amarela por ocasião do Holocausto.