Girl in Red e Lizzo foram a força feminina que fazia falta ao Passeio Marítimo de Algés.
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Não há uma definição única de mulher (como também não há de homem) e qualquer significado que venha no dicionário é parco e injusto. Pelos maiores palcos do Nos Alive passaram, na segunda noite de festival, dois mulherões que são tornados ou furacões ou ciclones ou outro fenómeno meteorológico qualquer que leve tudo à frente. Não podiam ser mais diferentes na forma com que se apresentam e nenhuma delas se enquadra nos padrões convencionais associados à feminilidade perfeitinha, mas ontem, à beira rio em Algés, Girl in Red e Lizzo foram ambas mulheres de poder e inspiração. Como tágides, as ninfas do Tejo que inspiraram Camões para que escrevesse "Os Lusíadas". E que falta faziam.
Marie Ulven é Girl in Red e é a prova de que há mais no Alive do que o palco principal, que poderia muito bem ter pisado. Ao início da noite, pelas 20 horas, não estava fácil entrar no palco Heineken, onde a multidão se acumulava à porta. Algumas cotoveladas acidentais depois, percebia-se porquê: daquele pavilhão fechado vinha uma lufada de ar fresco que se prolongaria até ao fim da atuação da norueguesa.
A plateia deu amor à cantora e compositora em forma de palmas e ovações espontâneas e ela retribuiu com uma energia tenebrosamente boa. Girl in Red vestia uma camisa branca simples e calças de ganga escuras, mas tinha os olhos todos postos em si como se estivesse de vermelho vivo, a fazer jus ao nome. Saltava e dançava muito, atirando naturalmente o cabelo aloirado e desarrumado para o ar, como que a expurgar demónios do corpo, transpirando indie pop durante uma hora.
Com um repertório maioritariamente sobre amor, paixão, tristeza e saúde mental, condensado numa hora de concerto, Girl in Red levantou a bandeira LGBT mesmo sem a ter na mão (no público, houve quem se tivesse encarregado disso) e apelou à defesa da democracia, tantas vezes ameaçada. Idolatrada por muitas jovens adolescentes, que reagiram a cada refrão e a cada partilha com gritos histriónicos, Marie, sensação de indie rock/pop apenas aos 24 anos, trouxe sobretudo temas do álbum de estreia ("If I could make it go quiet", 2021), como "Serotonin", "I'll call you mine", "Midnight love" e "Did you come?".
O fim foi louco: “I wanna be your girlfriend” pôs o público da primeira à última fila a saltar e a cantar que quer beijar na boca. “I don’t wanna be your friend, I wanna kiss your lips” muito alto, muitas vezes, umas a seguir às outras, e quando se pensava que já chegava, a norueguesa lança um desafio ao público. “Vamos fazer o maior crowdsurfing que o Nos Alive já viu. Vocês vão-me levar nos braços desde aqui à frente até ao fim de tudo”, disse. “Esta gaja é maluca”, responderam. E o que se seguiu foi uma mulher a ser celebrada no ar, passando de mão em mão, de braço em braço, até ao fim, como prometera.
Foi por causa de Marie que houve muita gente a chegar a Lizzo, no palco principal, com alguns minutos de atraso. Mas a segurança com que a norte-americana se apresenta faz acreditar que não teme concorrência. Até porque, àquela hora, o trono foi seu. Chama-se Melissa Viviane Jefferson, vem de Detroit e, na estreia em Portugal, deu um espetáculo lustroso e ofuscante cheio de vitamina de A a Z, onde também coube a sigla LGBT, não fosse ela uma mulher que veste as causas sociais em que acredita.
Aos 35 anos e mais de uma década depois de se ter lançado no mundo da música – primeiro no hip-hop, depois num R&B – Lizzo soma uma data de prémios e encabeça uma legião de fãs. Ao Alive, trouxe 17 canções (mais um "parabéns a você" aos aniversariantes presentes) sobretudo dos seus álbuns de maior sucesso (“Cuz I Love You”, de 2019, e “Special”, de 2022).
Voluptuosa, grande e orgulhosa do seu tamanho, Lizzo apareceu como uma espécie de guerreira, dentro de um macacão vermelho e preto colado ao corpo, com uma saia de cabedal que depois tirou, estilo mulher-maravilha do orgulho negro e "queer" (o termo compreende orientações sexuais e identidades de género fora da norma).
Lizzo celebra a individualidade em "Special" e “About Damn Time”, música com que fechou a poderosa aparição, a diversidade de género e a fluidez sexual em “Everybody’s Gay”, e a igualdade racial em “Better in Color”, que deixou fora do alinhamento. Desalinhado ficou o público com tanta dança e energia a vir de cada poro de Lizzo, que a dado momento trocou a fatiota vermelha por um body dourado lustroso a evidenciar ainda mais os movimentos livres de uma mulher livre.