Filme estreia-se 40 anos depois de terminado.
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Em 1985 Manuela Serra terminava o seu primeiro filme, "O movimento das coisas", rodado na aldeia de Lanheses, no Norte do país. O filme venceu alguns prémios internacionais, mas nunca estreou. E a realizadora não mais filmou.
Quase 40 anos depois, a cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa chega finalmente às salas. Manuela Serra fala-nos do que já foi chamado "o segredo mais bem guardado do cinema português", uma obra poética e de grande humanismo, que escapa a qualquer classificação. Absolutamente imperdível.
O que sentiu ao ver o filme pela primeira vez ao fim destes anos todos?
Foi havendo sempre projeções. O grande intervalo foi talvez até retomar em 2011, aí é que recomecei a ver. Já estava um bocado preparada para que fosse visto, tinha tido sucesso no Fundão e em alguns festivais aqui em Lisboa. Já estava um bocadinho alertada, mas nunca pensei que se chegasse a este ponto de apreço.
Mas tem voltado ao filme com outro olhar?
Não. Eu gosto muito do filme. Continuo a gostar muito do filme. Ainda me prende a atenção.
Que intervenção é que teve no processo de restauro do filme, além da inclusão do plano final que tinha sido retirado à época?
Foram correções de cor, sobretudo. E retirar alguma sujidade, sobretudo no início.
Quando foi feito estávamos na era analógica. As ferramentas do digital não a tentaram?
Eu não gosto de máquinas. Mesmo o aspirador, quando posso evito-o, faz muito barulho. Quando não gostamos de uma coisa evitamo-la. Como estou com esta idade, tenho evitado muito.
O que pensa que o filme tem hoje para oferecer às pessoas?
Sentir. É o que ultimamente me vem mais à mente. O que é preciso para aquele filme é levar as pessoas a sentir. A sentir como é importante a natureza e como ela é alternativa muitas vezes a sentir-nos bem. Por exemplo, no filme a igreja está ligada ao rio. Está ligada de propósito. É a paz, que tanto dá a igreja como dá o rio.
Ao olhar para "O movimento das coisas", o que mudou mais na sociedade portuguesa?
A sociedade mudou muito, mesmo muito. E nos aspetos que eu foco, mudou ainda mais. Quer dizer, confirma-se, para os aspetos subjacentes ao filme, que são a poluição, a deterioração do planeta. E a marcação do tempo, que não tem nada a ver com a de hoje. A distanciação entre cidade e campo ainda se acentuou mais, creio. Até porque o campo está deserto.
Manteve algum contacto com as pessoas que filmou?
Fui lá em 2014. Só os que na altura eram mais pequeninos é que estavam presentes. Era tão má a qualidade da cópia que mais recentemente voltámos lá, com uma projeção digna. Eles merecem. A menina do cão estava lá na projeção. E disse-me uma coisa engraçada: o filme retratava como ela tinha sido feliz na infância.
O que aconteceu à jovem que vemos no princípio, que vai trabalhar para a fábrica?
Ela morreu, em circunstâncias para mim muito perturbadoras. Eu queria fazer um plano, que não consegui, com ela a sair da fábrica, a multidão dos operários a sair. Até tocava uma sirene. Mas o patrão embirrou, chamou a guarda, não nos quis ali a filmar. Quando estava em fim de montagem, um jovem de Lanheses comunicou-me que a Isabel tinha morrido num acidente exatamente naquele local. Passou um carro e matou-a.
Mudou alguma coisa na montagem devido a essa tragédia?
O último plano do filme são as mãos da mãe da Isabel. Mas o plano começava com o rosto e depois descia para as mãos. Tive de tirar o rosto, era uma coisa horrível ter ali a mãe.
Hoje em dia já há mais mulheres realizadoras em Portugal, sobretudo no documentário. Sentiu alguma reação por ser mulher?
No meio do cinema as pessoas não se amam muito umas às outras. Haverá quanto muito pequenas ilhas. A ilha a que eu pertencia desfez-se. E desfez-se mal. Eu pelo menos não fiquei amiga de ninguém. Fiquei mesmo isolada. Ter estudado em Bruxelas também dificultou, por não ter cá os colegas de estudo. E houve quem não gostasse do filme, é verdade. E quem não gostasse que tivesse tanto sucesso em festivais. E guerrinhas, e disputas. Era mais uma a candidatar-se ao subsídio, também não convinha muito.
Ao ver o filme não lhe dá vontade de voltar a pegar na câmara?
É muito tempo. Até há mais ou menos 20 anos eu tinha esta distração, nunca me aborrecia num sítio. Enquanto as pessoas falavam à minha volta eu imaginava onde punha a câmara, como as pessoas se poderiam deslocar. Ainda brincava com isso. Mas já não faço isso. Era preciso ter vontade.
O que tem feito, entretanto, o que lhe dá mais prazer fazer?
Há uns 20 anos o meu filho morreu. E eu segui os conselhos de toda a gente, que era distrair-me. Dancei, dancei muito. E convivi com pessoas. Gosto de pintar, de mexer nos pincéis.
O que diria às pessoas para saírem de casa e irem ver agora o seu filme?
Quarenta anos de espera deve despertar curiosidade. É o que eu lhe disse, gostava que o filme produzisse nas pessoas a capacidade de sentir.