João Salaviza e Renée Nader Messora voltam a filmar com os Krahô em “A Flor do Buriti”, em estreia esta quinta-feira nas salas nacionais após um bem sucedido percurso em festivais de todo o mundo.
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Depois de “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, João Salaviza e Renée Nader Messora continuam a filmar com os índios Krahô, no interior do Brasil. “A Flor do Buriti” aborda precisamente o historial da comunidade e a sua luta para preservar o seu modo de vida e a sua relação particular com a terra. O filme chegou agora às salas portuguesas e recordamos aqui a conversa com os realizadores, após a estreia mundial em Cannes.
Quando fizeram o “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” já tinham ideia de continuar a filmar com os Krahô?
Renée Nader Messora – Na realidade a nossa vida passa muito pela nossa relação com os Krahô. Desde o “Chuva…” que temos passado mais tempo na aldeia que fora dela. Tem mais a ver com um projeto de vida que com um projeto artístico.
João Salaviza – No final do “Chuva…” houve conversas com a comunidade e começámos a pensar num filme que pudesse dar conta de uma coisa mais ampla, que é essa relação com a terra. Terra não como propriedade, como lugar de lucro, mas como parte do que é ser indígena. Historicamente, e hoje também.
Como é que o processo evoluiu?
JS – Houve uma pandemia e houve outra pandemia chamada Jair Bolsonaro e de repente houve esta possibilidade e este desejo de tentar encontrar uma espécie de linhagem sobre a resistência dos Krahô, histórica, mas principalmente nos últimos oitenta anos, com o massacre de 1940, o recrutamento forçado para uma guarda rural, uma milícia, durante a ditadura militar, e o que está a acontecer nos últimos anos.
O filme também é um reflexo ou uma consequência do período em que filmaram?
JS - Estivemos quinze meses a filmar, e o filme não podia ignorar o que se estava a passar. O filme acabou por ser incorporado, engolido pelo que se passou nesses quinze meses que estivemos na aldeia. Foi um momento de muita turbulência e muita violência no Brasil.
Essa aposta de vida de que a Renée falava, como é que vos transformou, enquanto pessoas?
RNM – Há tantas coisas de que podemos falar. Mas acho que vou ressaltar a relação com o tempo.
JS – Quando voltamos â cidade, a São Paulo ou a Lisboa, somos rapidamente engolidos, como toda a gente, por este frenesim, por este imperativo produtivo, por estas ansiedades que todos nós estamos a sentir, uns com mais outros com menos intensidade. Esta neura coletiva, nós também passamos por ela.
A vossa experiência tem sido mais profunda, tem sido uma vivência permanente e não apenas passar algum tempo com eles.
JS - Nós somos muito críticos dessa ideia muito romântica de pessoas que vão passar três meses num retiro espiritual na Índia e acham que voltam completamente transformadas. Ou que vão para uma comunidade indígena uma semana ter um contacto. As coisas não funcionam assim. Nós temos uma cultura, um modo de pensar e de agir que é muito antigo, está muito enraizado em tradições judaico-cristãs, romanas, capitalistas também, do mundo industrial. E nós não as anulamos dentro de nós por decreto.
Sentem de alguma forma que essa forma de pensar e agir tem mudado em vocês?
JS - O tempo passado com os Krahô e o privilégio de aprender tanto com eles, nesta troca contínua, faz-nos pelo menos perceber que é possível pisar este chão de uma outra maneira. Os territórios indígenas não são uma utopia do século XVIII que se perdeu. De facto, existe um povo que não está nem na literatura do passado nem nas efabulações futuristas. Existe mesmo, está vivo, a organizar-se, a viver, a ocupar a terra de uma outra maneira. É uma outra política, outra visão do mundo.
Há muito essa ideia e esse perigo também, de nós os “civilizarmos”…
JS - Perguntam-nos muitas vezes o que é que nós, não indígenas, podemos fazer para salvar os indígenas. A questão é a contrária, o que é que eles podem fazer para nos salvar e se estamos disponíveis para nos deixar salvar pelas propostas políticas, ecológicas que os indígenas nos estão a mostrar diariamente.
Nós vimos os Krahô felizes em cima do palco. Mas como é que eles se têm sentido neste “circo” de Cannes?
RNM – Eles estão aqui trazendo um filme que sentem que reflete o que eles são, que eles querem mostrar ao mundo. Estão muito contentes por descobrir que há muita gente interessada em querer descobrir quem eles são. Em querer escutar o que têm para dizer.
JS – Acho que eles veem estes lugares pelo potencial de formar novas alianças. Percebem que a luta passa por estar nas florestas, obviamente, por repelir invasores, mas também por tentar formar novas alianças a nível institucional. Os Krahô, historicamente, também souberam jogar este jogo.
Neste tempo que têm passado com eles, sentem que eles também querem contar as suas próprias narrativas?
RNM – Eles rapidamente perceberam que o vídeo podia ser uma ferramenta de luta. Quando nós chegámos à aldeia não tinham luz elétrica, hoje têm uma antena de internet e toda a gente está ligada ao Youtube. Entendem que a tecnologia pode ser uma aliada importante. No filme pode ver-se que só foi possível detetar uma invasão porque existia um drone de outro povo, com quem se ligaram por whatsapp. As tecnologias estão a ser muito usadas na luta indígena.
Depois da saída de Bolsonaro, já se notam medidas concretas para defender estes povos indígenas?
RNM – O primeiro gesto foi a criação do Ministério dos Povos Indígenas, uma coisa histórica. Ocupado por uma mulher que vem da militância indígena. Também temos um Ministério da Igualdade Racial, cuja ministra é irmã da Marielle Franco, assassinada durante o governo Bolsonaro. Esses quatro anos foram terríveis. Sentimo-nos ameaçados de muito perto. Agora temos de reconstruir um país que foi arruinado. Mas vai levar algum tempo.
Cannes é um trampolim para que estas lutas sejam conhecidas em todo o mundo…
JS – O nosso desejo é que estas imagens, estas vozes, tão pouco conhecidas fora do Brasil, tenham eco, atinjam outras sensibilidades, mas ao mesmo tempo também queremos que o filme consiga espalhar-se pelos cantos mais recônditos do Brasil, como aconteceu com o “Chuva…”. Soubemos que o filme foi espalhado por pen drives, links do Youtube, por aldeias que estão a mil quilómetros do povo Krahô