Na "Taberna Central", a mais concorrida da Azinhaga do Ribatejo, esplanada com vista para o Largo da Praça, onde jaz florida a estátua em bronze de José Saramago, a televisão mostra em directo as imagens da cerimónia fúnebre do escritor, a mais de 100 quilómetros, enquanto não começam os jogos do Mundial de futebol.
Alguns conterrâneos, poucos, entre eles, o presidente da junta de freguesia, Vítor Guia, e alguns membros da concelhia do PCP, foram, ontem, a Lisboa participar na última homenagem ao ilustre filho da terra. Mas a maioria ficou a ver pela televisão, na expectativa (gorada) de que as cinzas do Nobel da literatura português viessem ali repousar.
Luís Manuel Romão, de 55 anos, conhecido pelo "Vareta", está encostado ao balcão a beber uma cerveja. Olhando para a televisão, vocifera: "Isto é tudo uma farsa o que eles estão a fazer". Não é que Saramago, "um homem que nasceu pequenino e pobre", que "andou de pé descalço" e que "chegou onde chegou", "o rei de Portugal", não mereça esta homenagem e "muito mais". Só que "eles são uns disfarçados, uns mentirosos. Não gostavam dele porque era comunista" e na hora da morte ofereceram-lhe um funeral com honras de Estado.
José Maria Girão, de 56 anos, orgulha-se de ter recebido Saramago na sua taberna, onde bebeu "um ranhoso" (pequeno copo de vinho), numa das suas últimas visitas à terra-natal. Admira o homem e o escritor e não entende os que não gostam dele por causa da sua cor política. "A política é uma coisa, a pessoa é outra", dizia, admitindo que gostava que a Azinhaga fosse a última morada do Nobel, mas deixando a decisão à "consciência da dona Pilar".
Na Taberna do Maltez - onde Pilar e Saramago costumavam almoçar "couves com feijão", sempre que visitavam a aldeia -, a televisão também transmite o funeral. E quem ali entra para ir buscar o almoço - ontem, o prato do dia era cozido à portuguesa - demora-se a apreciar as imagens.
Felismina Silva, de 58 anos, diz que "foi falta de lembrança da junta" não ter alugado um autocarro para levar o povo ao funeral. "Foi pena. Sempre tinha ido mais gente", lamentava, junto das vizinhas que também gostavam de ter ido a Lisboa aplaudir Saramago.
Na casa de Otelinda Nunes, de 86 anos, amiga de infância do escritor e que o casal visitava sempre que vinha à aldeia, a mesa já está posta para o almoço de aniversário do neto. Mas a mulher não tira os olhos da televisão. "Tenho tanta pena de não estar ali. A Pilar está mesmo muito abalada... Nem parece ela. É tão bonita", dizia a amiga, que costumava emprestar um barco ao escritor para ir passear no rio Almonda.
Otelinda lamenta que "só agora" Portugal lhe dê estas honras. "Pena foi que não lhe fizessem isto em vida. Tão mal o trataram quando foi do livro que ele até quis ir viver para Espanha e agora, afinal, tem ali todas as personalidades do país". Anteontem, Otelinda admitia, ao JN, preferir que as cinzas de Saramago fossem depositadas na ilha de Lanzarote, onde viveu nos últimos anos. Mas, ontem, dizia-se "muito contente" com a decisão de as deixar em Lisboa. "Foi daqui para lá com dois anos. Aquela é a terra dele".
A decisão - conhecida pela televisão durante as cerimónias fúnebres e que pôs fim a vários dias de especulação, embora não seja ainda claro o sítio onde as cinzas serão colocadas na capital - entristeceu muitos habitantes da aldeia, que ambicionavam que Saramago ali regressasse. Mas todos, incluindo o presidente da junta de freguesia, forte entusiasta da ideia, aceitam e respeitam a decisão de Pilar del Rio. A notícia trocou as voltas a Lídia Guia, de 53 anos, da comissão política local do PCP, que não foi a Lisboa para ficar a tratar de uma coroa de flores vermelhas para receber as cinzas de Saramago no eventual regresso à Azinhaga. Sem cinzas, a homenagem do PCP foi feita na mesma, à tarde, junto à estátua que o escritor acedeu que lhe fizessem na terra.
