
A destreza narrativa é uma das principais marcas deste romance
Neusa Ayres/Direitos reservados
Obra de estreia do editor Rui Couceiro, "Baiôa sem data para morrer" - já na segunda edição - é um soberbo retrato de um interior desertificado e exangue.
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Para quem gosta verdadeiramente de livros, não há muitos momentos mais recompensadores do que a descoberta literária. Regressarmos às páginas de um escritor predileto pode até ser sinónimo de deleite absoluto, mas poder acompanhar (ou testemunhar) o nascimento de um autor é uma espécie de assombro a que só raras vezes assistimos. E que, por esse mesmo motivo, deve ser assinalado com o louvor merecido.
Com "Baiôa sem data para morrer", Rui Couceiro (Porto, 1984) protagoniza uma estreia surpreendente e não apenas para todos quantos entendem que um primeiro livro traz sempre associados um conjunto de pecadilhos que só o tempo pode amaciar.
Embora seja fácil identificarmos os ecos de grandes autores, o que distingue este romance é mesmo a forma como o autor, por muito que tenha assimilado influências literárias tão distintas, colocou todos os seus esforços na construção de uma voz literária pessoalíssima que faz augurar novos projetos ficcionais de amplo conseguimento.
A destreza narrativa vai assumindo múltiplas formas ao longo do romance, seja através de uma hábil gestão de expectativas ou até da espirituosidade do narrador, um jovem professor a atravessar uma crise existencial profunda que interrompe o torpor ao mudar-se para a aldeia onde nasceram os seus pais.
A partir de uma remota localidade alentejana chamada Gorda e Feia, o editor da Contraponto convoca um território muito mais vasto do qual o resto do país só se lembra quando por lá deflagra mais um incêndio ou ocorre um crime qualquer de faca e alguidar ou de ajuste de contas.
Sem que esse enunciado soe a manifesto de intenções, há no romance uma apologia da lentidão e um apelo ao reencontro com a nossa dimensão interior, cada vez ameaçada por um estilo de vida sôfrego, verdadeiramente admiráveis.
Romance tocado pela morte, dada a forma como os personagens se vão sumindo - sem que, todavia, os seus espetros deixem de atravessar a história -, "Baiôa sem data para morrer" pode ser lido como uma tocante homenagem à sabedoria ancestral que tem vindo a ser desvalorizada em prol de critérios estatísticos mais do que discutíveis. O inefável Baiôa, personagem que dá título ao livro, é o representante supremo dessa espécie em extinção que urge preservar.
